Raull Santiago: A culpa não é da favela
Neste lugar a principal política pública chega através da secretaria de segurança.
Ontem eu estava na casa da minha vó, conservando sobre varias coisas com ela, até que em meio a sorrisos e reflexões, as falas soltas foram tomando outro rumo, quando começamos a relembrar a nossa vizinhança e perceber a quantidade de pessoas que cresceram conosco, mas se foram dessa vida de forma violenta.
Mães que tiveram seus filhos assassinados e assim ficaram doentes e também morreram. Vários jovens crescidos comigo, ou filhos e netos daquela vizinhança, assassinados de forma violenta, na brutalidade dos significados de sobreviver no lado desigual, da chamada desigualdade.
Infelizmente aqui na favela, as pessoas sabem o quanto dói a dor. O quanto é agonizante a saudade que a morte deixa. E também, o quanto pesada pode ser uma lágrima.
Quem não convive com a realidade de existir neste cenário, onde resistir muitas vezes é o verbo e o processo do dia a dia, jamais conseguirá ter noção dos significados que isso tem. Podem fazer um milhão de pesquisas, tentar de vários formas, mas aqui dentro, existem coisas que não são possíveis serem expostas ou expressadas em palavras e gestos, porque surgem dentro de cada alma.
O julgamento construído no privilégio de quem não vive aqui, construiu ao longo da história muitas dessas resultantes, que foram forjadas a base de um racismo e desigualdade extremamente violentos, semeados aqui em forma de política pública.
Quantos futuros poderiam ter acontecido?
Quantos caminhos poderiam ter trilhado tantas dessas pessoas incríveis?
Pessoas essas que jogaram bola de gude, soltaram pipa, peão e brincadeiras comigo… ou ajudaram a desentupir esgotos, ou a secar casas inundadas pelas chuvas e enchentes, ainda mais para quem como nós, ali daquela área, morava na encosta do valão, que sempre enchia com qualquer chuva…
Sei lá, sabe. Tenho quatro filhos aqui dentro dessa favela. Dois meus, os da minha companheira, ou seja, os nossos. E o tipo de preocupações que mães e pais da favela tem, são sempre relacionados a coisas sérias, violência extrema e muito medo. É desesperador!
Em meio as correrias, tive a oportunidade de viajar algumas vezes pelo Brasil e mundo, só que, sempre para as mesmas missões, importantes obviamente, porém, para falar sobre estratégias de enfrentar a violência, aprender sobre, ou criar junto com outras juventudes essas estratégias. No mundo inteiro, as pessoas sabem quem vive as violências extremas. E sabem também que são pelos mesmos motivos, ou seja, racismo, desigualdade e preconceitos.
O lance é que eu sozinho não conseguiria, por exemplo, promover para minha família uma missão dessas, viajar juntos, ainda mais para fora do pais e assim poder tirar umas férias. Essa não é a realidade financeira de onde cresci. Não é a minha realidade.
Então, ao longo da vida, passamos a conhecer nossos demônios, a tentar lidar com isso e quem sabe, mudar alguma coisa nessa realidade.
Conversando com a minha vó, ficamos alguns momentos naquelas reflexões quase silenciosas, em resmungos que dizem, “nossa, quanta gente”, “que triste isso tudo”. Olhando para o nada, sacudindo a cabeça em concordância, mas sem muita coisa para dizer, enquanto se sente tudo.
Sabemos de dentro, sentimos por dentro. Casos de pessoas com uso problemático de drogas, envolvimento com o varejo das drogas, violências vividas pela mão da polícia, tantas mortes.
A primeira vez que a polícia me agrediu, eu falei comigo mesmo: vou aprender à atirar, vou tirar meu prejuízo. Quantos de nós, daqui, nunca pensou isso? Nas agressões seguintes, revolta facilmente ia se tornando ódio.
Muitas pessoas foram importantes para eu aprender a canalizar as dores, revoltas e ódio, como combustível para tentar construir mudanças, garantir direitos e transformar as coisas a partir da educação, informação e disputa de narrativas. Pessoas acreditaram em mim. E eu acredito nas pessoas daqui. E acredito neste lugar. Eu sou daqui.
Neste lugar a principal política pública chega através da secretaria de segurança.
A polícia como contato direto entre “nossos” governantes e a população que aqui vive. A “guerra às drogas”, onde a parte da -guerra- tem endereços e corpos específicos como alvo: as periferias nacionais, de corpos pretos, indígenas e periféricos… segue tentando nos segregar e silenciar através de UPP, Intervenção Militar e toda forma de contenção militarizada da vida cotidiana na periferia.
Gasta-se milhões em publicidade do medo, colocam a favela como “bode expiatório” através de discursos fakes como “guerra às drogas” e assim, seguem lucrando a grande empresa multinacional de nome fictício “Segurança Pública”, que tem atuação privada e promove espetáculos de terror, vendendo falsa segurança e alimentando egos do privilégio, através de violência direcionada a nossa população das periferias.
Enfim, são milhares de questões em efervescência em cada beco, viela e ladeiras da favela. Que precisam de atenção, investimento, cuidado, empatia, oportunidade, de tudo. Menos do seu racismo, violência, preconceito e estrutura desigual crescente.
A cada novo dia, um sonho, uma esperança, uma dificuldade superada, uma barreira atravessada, um sorriso, um choro, um dia sem luz, outro sem água, as vezes os dois. Busão lotado, metrô lotado, transito infernal. Uma mensagem, um moto táxi, tá calor e vem chuva. É dia de feira, é dia de bar, passar no mercado. A vida acontece, os baques perseguem.
Hoje eu recebi a notícia de que uma prima se suicidou. Fazia pouco tempo que ela havia se tornado mãe. Um dos meus avós também se suicidou no passado. A morte é presente, quase uma amiga. Uma pena, não é daquelas que tentamos cultivar.
Mas a vida é algo lindo. Vale lutar para garanti-la, mesmo que as estruturas nas quais se fundaram essa sociedade, desde a exploração colonizadora, a escravidão, os genocídios, hoje chamados de “guerra às drogas” tentem nos frear. E a luta por garantia de vida e direitos também é linda. E você encontra muitas pessoas inspiradoras nessa caminhada, que fazem o acreditar queimar forte e te impulsiona a seguir em frente.
A culpa não é da favela, por isso não podemos deixar o silêncio como mensagem!
Eu ia dar bom dia.
Mas agora já é de tarde.