Radiodifusão: novo marco legal para mais democracia e não para menos
Que tipo de política pública de regulação da radiodifusão esperar de um governo com um histórico desses na área? Um governo que promove censura institucional, que persegue artistas, produtores culturais, jornalistas e veículos de mídia?
Diz o ditado que a vingança é uma péssima conselheira. No geral, iniciativas que têm origem no ódio e na retaliação ao outro são autoritárias e discricionárias, porque têm o objetivo de calar setores, esmagar discordância e impor o pensamento único.
O que vimos ao longo de 2019 foi uma enxurrada deste tipo de ação por parte do governo Bolsonaro, que se movimenta na lógica do combate ao inimigo – que para Bolsonaro é a esquerda, o pensamento progressista, os direitos humanos e as liberdades fundamentais.
Um dos alvos prioritários do presidente e sua trupe foi a liberdade de expressão — incluindo aqui os ataques à imprensa, à produção cultural e artística, entre outras. Foram incontáveis os casos de ataques a jornalistas, comunicadores e a veículos de comunicação. Todos que ousaram publicar algo que desagradasse o governante foram colocados na mira.
Agora, o governo solicita ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Informática e Comunicação (MCTIC) que proponha alterações no marco legal da radiodifusão, com o intuito de “endurecer” as regras para concessão e renovação das outorgas de radiodifusão.
Segundo notícia publicada pela Folha de S.Paulo neste dia 26/12, o foco das mudanças está nas exigências fiscais para as concessões. Só empresas que não tiverem dívidas com a União é que terão seus pedidos avaliados.
Em fase de estudo, as propostas surgem logo após Bolsonaro ter ameaçado de não renovar as concessões da Rede Globo, que vencem em 2022.
Longe de defender a Globo e tomar partido de um dos lados dessa guerra política, o que nos cabe discutir é o que Bolsonaro está tramando neste campo. E, olhando a retrospectiva do seu governo, a expectativa é de que não venha coisa boa.
Primeiro porque o objetivo é endurecer regras, criar obstáculos e mais filtros para disputar uma outorga. A revisão do marco legal de 1962 para a radiodifusão tem menos relação com regras mais duras ou brandas, com mais ou menos regras. O que precisamos é definir mecanismos legais que imponham ao processo de concessão mais transparência, mais participação social e parâmetros mais explícitos para aumentar a diversidade e pluralidade dos conteúdos ofertados para a população.
Os mecanismos acima listados não guardam qualquer relação com a linha política adotada pelo governo, que age para restringir ao máximo os instrumentos de participação social no debate, decisão e acompanhamento de políticas públicas.
Além disso, em 2019 o governo tomou ou ensaiou medidas econômicas para calar veículos de comunicação, seja no montante de recursos de publicidade oficial — que favoreceu a Record e o SBT, empresas simpáticas ao governo, seja excluindo empresas de editais para assinatura de veículos — como fez com a Folha e depois voltou atrás, seja editando medida provisória para mudar regras de publicação de balanços de empresas. Isso para citar apenas três exemplos.
No caso da mídia alternativa, a perseguição se ampliou a partir do aumento de medidas judiciais contra jornalistas, comunicadores e blogueiros.
No caso da comunicação pública, o governo desmontou o pouco que ainda havia de independência entre a programação da TV Brasil, quando publicou portaria unificando o conteúdo dos canais NBr (estatal) e TV Brasil (pública) atentando contra a Constituição Federal; promoveu censura contra jornalistas da Empresa Brasil de Comunicação, e ainda estuda se vai ou não incluir a EBC no programa de privatizações.
Que tipo de política pública de regulação da radiodifusão esperar de um governo com um histórico desses na área? Um governo que promove censura institucional, que persegue artistas, produtores culturais, jornalistas e veículos de mídia?
É indiscutível que o Brasil precisa de um novo marco regulatório para a radiodifusão. O movimento de luta pela democratização da comunicação tem alertado para essa exigência há mais de uma década. Propostas democráticas para a regulamentação dos artigos da Constituição Federal que tratam da Comunicação Social Eletrônica foram debatidas amplamente no curso da 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) em 2009. Depois, liderados pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, o movimento social elaborou o Projeto de Lei da Mídia Democrática com uma proposta regulatória para a radiodifusão no país.
Essas propostas foram pautadas pela ampliação dos espaços de cidadania, de exercício da liberdade de expressão, de elevação do ambiente democrático de debate público com mais diversidade e pluralidade, todos quesitos para a construção e aprofundamento da democracia no nosso país.
Não considero que as motivações de Bolsonaro estejam em sintonia com essas diretrizes. Mudanças no marco legal precisam ser debatidas no âmbito do parlamento brasileiro. Por pior que seja o ambiente atual na Câmara dos Deputados e no Senado Federal para enfrentar essa discussão, não vamos nos furtar de disputar essa agenda que é estratégica para o futuro do país, desde que ela venha para ampliar e não para restringir a democracia.