Quem tem a força de saber que existe
Reside nas pessoas trans o nosso maior desafio enquanto sociedade e movimentos sociais que lutam por igualdade de gênero. Porque são eles os que experimentam os tantos desafios de transitar. De viver a experiência contrária.
Um amigo querido, das pessoas que mais respeito no mundo, é um homem trans. A história dessa transição pertence a ele. A mim pertence o carinho. O afeto, a admiração. Disso, sim, poderia falar longamente.
Um dia ele me contou o algo que nunca esqueci, quando a transição o levou a ser lido pela sociedade como homem, tudo mudou. Tudo mudou? Eu pergunto. Como? Ele disse: sim. Agora eu entro em táxis no Rio de Janeiro e os taxistas fazem comentários sexistas sobre as mulheres atravessando sinais. Comentam suas curvas, suas roupas. E eu, que já fui lido como uma mulher atravessando um sinal mas lutei muitíssimo para ser lido como homem, fico angustiado. Sem saber que bandeira erguer.
Esse relato me marcou muitíssimo. Que bandeira erguer? Não é absolutamente justo não querer erguer nenhuma? Pagar e saltar no seu destino? Não seria esse destino que ele escolheu com muita dificuldade? Um pelo qual ele lutou e luta incansável?
Anos se passaram. Assistido o material ainda bruto do que será o belíssimo documentário “Chega de Fiu Fiu”, de Fernanda Frazão, me deparei com a experiência oposta. Uma mulher trans contando do assédio e do sexismo que enfrenta diariamente desde que passou ser lida socialmente como mulher.
Estamos diante do velho impasse. Aquelas lidas como mulher, são presas, pedaços de carne, mais baratas quanto mais escura for a cor da sua pele. Homens, por sua vez, detém o poder. De rir, de abusar em tom de suposto elogio, de olhar de maneira constrangedora, de emitir sons irreproduzíveis. Mas aqueles que viveram a experiência oposta antes são talvez os protagonistas que sempre procuramos: aquelas e aqueles que podem nos dizer que não há nada de normal nisso tudo. Tudo depende de como você é lido pelo mundo à sua volta. Neste momento nascem cumplicidades de um lado e sororidade do outro. E nada disso tem em nada a ver com o que é natural, mas com o que é naturalizado.
Reside nas pessoas trans o nosso maior desafio enquanto sociedade e movimentos sociais que lutam por igualdade de gênero. Porque são eles os que experimentam os tantos desafios de transitar. De viver a experiência contrária.
Me lembrei agora de uma frase da imensa Maya Angelou: pessoas vão esquecer o que você disse, pessoas vão esquecer o que você fez. Mas jamais esquecerão o que você as fez sentir. Pessoas transgênero causam, na maioria de nós, desconforto. Sentimos inadequação palpável, seja em nós seja dentro de nós, seja projetando-a nelas e neles. A menos que tenham avançado no processo de transição o suficiente para serem lidos como um dos gêneros socialmente aceitos. Daí, colocados na caixinha que pertence do seu respectivo papel de gênero, passam a lidar com as expectativas que vêm com tal caixinha. A partir deste momento, o velho normal se aplica e o desconforto vem junto.
As pessoas trans têm no Brasil, de acordo com o IBGE, expectativa de vida de 35 anos. Metade de um cidadão brasileiro cis. Números medievais. Em todo os sentidos, são uma população tão vulnerável quando poderosa na sua potência de desorganizar o consuetudinário.
Pessoas trans explodem padrões. Para alguns, um ato libertário. Para outros, terroristas.
Seja por se apresentarem para a sociedade brasileira como um ser em transição – desmontando o trivial, seja tendo completado a transição e sendo capaz de escancarar o velho normal, colocando-nos diante de nosso pior.
Existe uma canção dos Secos e Molhados que eu costumo escutar sempre que me falta forças. Ela está no álbum de estréia do grupo, de 73, e diz: quem tem consciência para ter coragem/quem tem a força de saber que existe/e no centro da própria engrenagem/inventa a contra-mola que resiste. Pra mim, é um hino sobre a firmeza de espírito. Quando eu preciso dela, é nessa canção e nas histórias dessas pessoas de bravura infinita que eu a encontro.
Que saibamos acolher as infinitas maneiras de ser que o mundo tem nos permitido descobrir. Que saibamos aprender com elas novas maneiras de ser, nós também. Será bom.
Sejamos amor da cabeça aos pés. E aprendamos a sempre saudar aqueles que têm a força de saber que existe.