Por José Graziano da Silva

Jornais de hoje destacam que Gaza voltou a receber ajuda humanitária após três meses de bloqueio por parte de Israel. De fato, sob forte pressão internacional depois da denúncia da OMS que mais de 2 milhões de pessoas estavam passando fome por não ter o que comer, permitiu-se a entrada de 5 caminhões com comida e remédios. Melhor repetir porque é difícil de acreditar:apenas cinco!

Em tempos de guerra, catástrofes climáticas e instabilidade econômica, a fome volta a ser uma tragédia cotidiana para centenas de milhões de pessoas ao redor de um mundo de fartura de alimentos. No entanto, mais cruel que a fome em si é a decisão deliberada de ignorá-la — ou, pior, instrumentalizá-la politicamente. O governo Trump 2 marca justamente essa virada: o uso da fome como arma política e ideológica, atacando diretamente os pilares de ajuda humanitária do sistema multilateral das Nações Unidas e impondo uma agenda que despreza os mais vulneráveis.

O recém divulgado Relatório Global sobre Crises Alimentares 2025 oferece um retrato devastador: mais de 280 milhões de pessoas em 59 países e territórios enfrentam níveis agudos de insegurança alimentar — o maior número já registrado desde 2017 quando o relatório começou a ser divulgado. Desses, 24 países se encontram em situação “catastrófica” ou de emergência, com risco iminente de fome generalizada,“famine” no termo técnico que caracteriza a situação onde as pessoas estão literalmente morrendo de fome!. Os principais fatores são ( nessa ordem de importância): 1- os conflitos armados, 2-os choques climáticos extremos e 3- as dificuldades econômicas geradas por dívidas externas impagáveis e inflação persistente.

Nada disso é invisível, conhecemos as causas. O que falta é vontade política — ou melhor, sobra boicote, sabotagem… Desde sua volta à presidência, Trump retomou o desmonte do multilateralismo com entusiasmo renovado. Em janeiro de 2025, assinou uma ordem executiva que proíbe qualquer menção à diversidade, equidade e inclusão (DEI) em documentos oficiais do governo federal norte-americano, classificando essas iniciativas como “imorais”. Essa postura se estendeu rapidamente às agências da ONU, com pressões explícitas como na FAO, por exemplo, onde o embaixador americano exigiu na última reunião do seu Conselho, eliminar os termos como “gênero”, “mudanças climáticas” e “justiça social” de seus programas e comunicados.

Os ataques não são apenas retóricos. O Programa Mundial de Alimentos (PMA), que em 2023 prestou assistência alimentar a mais de 150 milhões de pessoas, anunciou cortes de 30% por conta da retirada de financiamento dos Estados Unidos. Isso significa menos cestas básicas distribuídas, menos refeições escolares, menos apoio à agricultura de subsistência local. Como consequência, a capacidade de resposta às piores crises como são os deslocamentos forçados na Faixa de Gaza, no Sudão, no Haiti, para citar apenas alguns dos mais atingidos, fica dramaticamente comprometida.

A combinação entre conflito armado, clima extremo e crise econômica exige uma urgente e intensa ação internacional coordenada para alcançar ao menos uma trégua duradoura para permitir a retomada da ajuda humanitária. Mas a postura americana atual é de cinismo: em abril, Trump determinou que nenhuma agência federal americana poderia considerar impactos climáticos na formulação de suas políticas públicas!

Enquanto isso, 36 milhões de pessoas são forçadas a se deslocarem internamente e cerca de 10 milhões a migrar de seus países por motivos ligados à fome. Os sistemas alimentares, já fragilizados por secas, inundações e aumento dos preços, estão colapsando diante da omissão dos grandes doadores em prover ajuda humanitária. E quando os Estados Unidos abandonam fóruns como a Parceria Global para Agricultura Climaticamente Inteligente ou boicotam resoluções sobre nutrição na ONU, enviam um sinal inequívoco: o combate à fome só importa se estiver alinhado a seus interesses geopolíticos. Nem nos estertores da Alemanha de Hitler se bloqueou a ajuda humanitária!Exatamente por esse motivo: por ser humanitária, destinada a todos os humanos que passam fome!

Hoje a retórica da “soberania nacional” se impõe cada vez mais sobre os princípios de solidariedade internacional. Em março de 2025, os EUA foram o único país a votar contra a prorrogação da Década de Ação sobre Nutrição proposta por Brasil e França na Assembleia Geral da ONU. A resolução teve apoio de 158 países — nenhum outro votou contra. A justificativa do governo Trump 2 foi que o combate à má nutrição não traz “benefícios tangíveis para o povo americano”.

A ofensiva ideológica não parou por aí. Na última reunião do Conselho da FAO, os EUA rejeitaram uma proposta que buscava adaptar a governança da agência aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), repetindo a postura já assumida pouco antes na ONU. O atual governo americano pressiona a FAO a agir apenas como uma prestadora de assistência técnica, limitada à distribuição de sementes e fertilizantes, sem tocar nos temas de equidade, justiça climática ou soberania alimentar. É uma tentativa clara de despolitizar a luta contra a fome — como se ela fosse neutra, como se não tivesse causas sociais e econômicas.

No entanto, os fatos cotidianos desmentem essa falsa dicotomia entre interesse nacional e dever global. A própria FAO estima que seriam necessários cerca de US$ 540 bilhões por ano em investimentos adicionais para erradicar a fome até 2030 — valor irrisório diante dos mais de US$ 2 trilhões que o mundo gasta anualmente em armamentos. A fome, portanto, não é um problema técnico, e muito menos inevitável: é uma escolha política.

Ao politizar a cooperação internacional, os Estados Unidos enfraquecem a confiança no sistema multilateral, isolam-se no cenário diplomático e colocam em risco milhões de vidas. A sobrevivência de instituições como FAO, PMA e ACNUR (agência da ONU que atua na Palestina) não pode depender da postura ideológica de um único governo. A resposta passa por mecanismos de financiamento mais compartidos e estáveis, liderados também por países do Sul Global. E acima de tudo, pela reafirmação que segurança alimentar é um direito humano de todos — não apenas de alguns privilegiados.

A ONU, como representante da grande maioria dos países do mundo, precisa reafirmar que seguirá esse caminho do multilateralismo tendo a cooperação e a dignidade como pilares de um futuro comum. A garantia incondicional da ajuda humanitária é parte desse futuro. Afinal, a fome está batendo à porta de um número sem precedentes de pessoas. Ignorá-la — ou usá-la como arma política-ideológica — é uma afronta à humanidade, à nossa própria condição de seres humanos!