Foto: Rahul Sapra

Por Susana Prizendt

“Pula a fogueira, ioiô. Pula a fogueira, iaiá. Cuidado para não se queimar. Olha que a fogueira já queimou o meu amor.”
Getúlio Marinho (Amor)

Mesmo que queimem os símbolos, não queimarão os significados. Mesmo queimando o nosso povo, não queimarão a ancestralidade.”
Antônio Bispo dos Santos (Nego Bispo) 

Enquanto a população gaúcha ainda tenta se secar em meio ao dilúvio que abateu boa parte de seu território, o Pantanal agoniza de sede. Incêndios devoram um bioma que sempre se caracterizou pela abundância de águas, nas quais um conjunto de seres vivos nativos havia encontrado as condições necessárias para viver e se reproduzir. Em relação ao primeiro semestre do ano passado, o aumento dos focos de queimadas neste ano foi de quase 900% – e ainda nem chegamos ao período do ano considerado mais crítico para o bioma, o que acende um alerta impossível de se ignorar. 

Secas em lugares inesperados – como a que agora assola o Mato Grosso do Sul e a que ocorreu, há poucos meses atrás, na região do Rio Negro, em plena Amazônia -, são consequência do mesmo caos climático que gerou as enxurradas no sul do país. O aquecimento da atmosfera planetária, sufocada pelos gases de efeito estufa que a sociedade humana vem emitindo em ritmo acelerado, pode ser traduzido por um aumento da ocorrência de eventos extremos, que vão de furacões às nevascas, passando por muitos outros fenômenos que normalmente costumavam habitar mais os nossos pesadelos do que o nosso cotidiano.

A superfície da Terra está sendo tostada e sabemos que, se continuarmos no mesmo ritmo, a espécie humana corre sérios riscos de sofrer hipertermia, virar pururuca e ser devorada definitivamente pelo que podemos chamar de Antropoceno ou de Capitaloceno: a era geológica em que os seres humanos, movidos pela lógica do capital, passaram a interferir no sistema climático do planeta de modo pungente – alterando suas paisagens e seus fluxos, a ponto de deixá-lo à beira da sexta extinção em massa de sua história, a primeira provocada pela ação de uma única espécie de ser vivente. 

Se os próprios “homo” sapiens vão fazer parte dessa leva de seres que sumirão do mapa é algo ainda em aberto, mas há motivos para crer que as chances são grandes e que os próximos anos serão determinantes para que escapemos ou não do desaparecimento – como demonstra Luiz Marques, em seu livro “O Decênio Decisivo”. É um embate que vem se dando (e se dará cada vez mais) entre as forças destruidoras e as forças criadoras que nos habitam desde que conquistamos a capacidade cognitiva necessária para modificar o ambiente de forma tão incisiva. Mas, embora saibamos que não é possível isolar países do ponto de vista climático, vamos voltar por hora à nossa Terra Brasilis, e ao cenário que encontramos aqui. 

Como os supermercados não deixam a gente esquecer – já que abarrotaram suas prateleiras com produtos típicos deste período -, estamos na dobradinha junho e julho, época dos arraiás e de preparar e saborear os quitutes da culinária caipira. É um tempo em que dançamos, cantamos, brincamos e enchemos a vida de cores, através de nossas roupas, acessórios e enfeites, como os varais de bandeirinhas de papel… Um tempo em que as fogueiras são acesas para aquecer as noites frias e iluminar os festejos, trazendo uma atmosfera de encantamento e alegria. Mas jamais imaginaríamos ver uma cena tão desconcertante (para não dizer uma palavra impublicável), como vimos, há poucos dias, no município de Corumbá, Mato Grosso do Sul: um arraiá sendo festejado num primeiro plano, enquanto a paisagem no fundo era devorada por um fogo voraz.

Em sua origem, as festas juninas – atualmente, também as julinas – eram celebrações pagãs europeias para louvar a fertilidade da terra, emanando energias para que essa fertilidade se renovasse e gerasse colheitas fartas. Quando vieram para o Brasil, os portugueses trouxeram uma versão já adaptada à religiosidade cristã, na qual alguns santos são homenageados em dias específicos. É daí que surgiu a expressão “fazer um São João” como sinônimo de quermesse ou arraial. Dentro da massa pulsante que forma a cultura brasileira, a festividade foi se transformando e adquirindo características próprias nas diversas regiões do nosso território. 

Aqui em São Paulo, morando num bairro residencial periférico, cresci acompanhando os preparativos para o evento. Desde a arrecadação de prendas – com cada pessoa da vizinhança doando o que podia para compor os prêmios de quem se saísse bem nas brincadeiras -, até os ensaios da quadrilha – momento alto da festa, com direito a realização do “casamento na roça” -, tudo era feito de forma bem comunitária. E é claro que as comidas e bebidas típicas também eram caseiras e cada família costumava preparar um prato doce ou salgado para formar o cardápio. 

Era uma época em que não havia problema em comer tantos quitutes feitos de milho, como curau, pamonha e bolo de fubá, pois o ingrediente principal não vinha de plantações transgênicas. Algo muito diferente de hoje, em que o triângulo amarelo contendo um T, símbolo de identificação de algo feito com insumos geneticamente modificados, deveria ser estampado em boa parte dessas comidas, se a lei fosse mesmo seguida. Depois que o grão caiu nas graças da máfia dos OGMs, ela inundou, em apenas algumas décadas, o território brasileiro com suas sementes patenteadas, dominando a produção e contaminando muitas das variedades campesinas. 

Com a instalação do império da bioengenharia monetarista – e suas experiências inescrupulosas com os elementos mais básicos da vida, das quais somos cobaias -, se tornou bem difícil conseguir comprar um produto alimentício que seja livre de alimentos que passaram por transgenia. Seja soja, seja o próprio milho, é necessário adquirir versões orgânicas para não ingerir as que tiveram seu DNA modificado com genes de outras espécies; modificação feita, muito provavelmente, para resistir aos efeitos de algum agrotóxico produzido pelas mesmas corporações transnacionais que patenteiam e produzem as sementes. Sim, ganhar em dose dupla é uma marca desse setor, como mostram as indústrias que fabricam tanto os venenos como os remédios para as doenças que eles causam.

O fato é que, atualmente, nossas festas caipiras não costumam contar mais com os milhos crioulos para compor as tais receitas da roça. Os pratos típicos a base do grão, que ainda resistem em meio à invasão de fast foods globalizados que encontramos nas quermesses país afora, fazem parte de uma cadeia produtiva que está diretamente ligada à destruição dos nossos ecossistemas e ao próprio drama climático. Junto com a soja e a cana-de-açúcar (também altamente presentes nos comes festivos para dar crocância e doçura, deixando tudo hiper palatável),  a cultura do milho forma o trio campeão no uso de agrotóxicos, entrando no grupo das commodities comestíveis responsáveis pelo alto grau de contaminação de nosso solo, nossa água, nosso ar e nossos corpos. 

A expansão dessas monoculturas envenenadas em todos os biomas brasileiros está diretamente relacionada com a desregulação ambiental causadora da fritura climática que ameaça inviabilizar o cultivo de muitas espécies de alimentos nas diversas regiões do país. Então, podemos ver que há uma contradição (mais uma no capetalismo!), quando uma festa que surgiu para celebrar a fertilidade da terra está enredada no sistema que está destruindo a capacidade da natureza de gerar comida saudável e nutritiva. Para nossa tristeza, boa parte dos arraiás realizados neste período tornaram-se festas-transgênico-juninas, muitas vezes embaladas pelo som de cantores do chamado “Ogronejo”, especializados em enaltecer o mundo rural mercantilizado. E passaram a fazer parte da engrenagem que vem moendo nossas esperanças em termos uma vida minimamente segura num futuro distópico que parece já ter chegado. 

Arroz sem doçura 

Uma das consequências dramáticas das inundações no Rio Grande do Sul é que as águas devastaram as lavouras de arroz da agricultura familiar da região, responsáveis por uma parte expressiva da produção nacional. E o cultivo orgânico, justamente o que proporciona comida sem veneno para a população, inclusive para as crianças nas escolas públicas de muitos municípios, foi duramente afetado. Foram atingidos 12 assentamentos da Reforma Agrária, somando ao menos 420 famílias agricultoras, desmanchando um trabalho que é referência internacional em Agroecologia. 

Como sempre, a lógica do poder econômico é a que prega a maximização dos lucros na fartura e na “fartância” (quando o que é essencial à sobrevivência falta). Assim, uma das primeiras medidas do lado Ogro da força foi espalhar boatos de que iria faltar arroz no prato e que as pessoas deveriam correr aos mercados para fazer estoque desse alimento tão fundamental na dieta brasileira. O efeito desse tipo de alarme não costuma ser outro, senão o de elevar os preços devido ao aumento da demanda, regra básica do capital. Toca o governo federal entrar em cena para pedir ao povo – ao menos ao setor que tem grana suficiente para comprar vários pacotes -, para não abarrotar a despensa com arroz porque não iria faltar e isso só geraria mais pressão no fornecimento, já prejudicado pelas chuvas atípicas no sul. 

A divulgação de que haveria apoio à agricultura familiar gaúcha atingida pela catástrofe foi feita ao mesmo tempo em que se anunciava a importação de grande volume de arroz, o que garantiria que não faltasse no país. Se você pensou que esses informes iriam acalmar um pouco a população, errou redondamente: tome mais uma leva de mentiras nas redes anti-sociais, com direito a arroz chinês de plástico e outras aberrações. Então, o governo passou a desmentir mais esses absurdos, entre tantos que circularam, desde o início do drama gaúcho. Uma energia imensa do poder público acaba sendo drenada com essa guerra de versões, quando o que deveria ser alvo de drenagem é, literalmente, o solo da região atingida. 

Independentemente dos resultados dessa queda de braços narrativa, é inegável que o arroz, assim como o feijão, vem perdendo espaço nas lavouras brasileiras. Nestes meses de quermesses, ele sempre esteve presente em uma versão bem especial: o arroz doce. A receita típica, cremosa e com a picância da canela, faz parte dos quitutes apreciados nas festanças e enriquece o cardápio de comidinhas caseiras. E, diferentemente do que ocorre com o milho, a transgenia desse cereal ainda não se popularizou e é possível saborear o prato sem o desgosto de saber que está ingerindo algo feito com o predomínio de OGM. Mas essa doçura está em ameaça. 

Além de perder terreno para outras culturas mais lucrativas às empresas agroalimentícias e de ter sido atingida em cheio pelas cheias gaúchas, o grãozinho simpático – que faz um par tão saudável com o feijão – também é, há muitos anos, alvo da máfia da biotecnologia, a que não se importa em criar e empurrar sementes com mudanças genéticas que podem fazer mal à saúde e gerar danos à natureza, desde que também gerem lucro. Até agora a sociedade  esteve alerta e organizações de vários setores já manifestaram contrariedade ao cultivo do arroz transgênico, mas nunca podemos baixar a guarda porque o poder corporativo tem recursos pesados para desequilibrar a balança: grana, chantagem, ameaças, desinformação, judicializações… o que não falta é munição para bombardear quem se colocar no caminho.

Bola na lata 

Por falar em bombardear, entre as brincadeiras juninas, uma que costumava fazer sucesso no meu tempo de garota era a bola na lata: latinhas empilhadas em uma prateleira eram alvejadas com bolas de meia e caiam em um tecido suspenso atrás da montagem. Dependendo de quantas delas a gente derrubava, a prenda recebida era mais valiosa. Se a presença da lata em si já representava a existência de alimentos industrializados processados na vida cotidiana, os produtos com embalagem de uso único ainda eram exceção na cozinha das pessoas. Hoje, eles já estão até em áreas muito remotas e desembalar e descartar são verbos mais do que corriqueiros no dia a dia. 

A busca crescente pela padronização dos produtos alimentícios, trazendo maior durabilidade, facilidade de transporte e de armazenamento, está no centro do modelo agroalimentar atual, em que reinam aditivos artificiais para tentar mascarar a absoluta monotonia que o acomete. O que comemos vem sofrendo a mesma perda de diversidade sofrida nos campos. Cerca de 66% do que ingerimos globalmente deriva de somente nove culturas. Sim, isso significa perda de sabores, de nutrientes e de tradições culturais, muitas vezes milenares. Mas não é só: representa, também, a perda da saúde individual, coletiva e ambiental. 

O modelo produtivo de alimentos (se é que ainda podemos chamar boa parte de seus produtos de alimentos) tem um impacto avassalador no planeta. A FAO, setor da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, estimou que 31% do que emitimos de gases de efeito estufa provém do sistema agroalimentar globalizado. Se já é um número expressivo e que revela a necessidade de mudanças urgentes, dado o volume que ele representa, a situação aqui no Brasil é ainda mais gritante: só a agricultura é responsável diretamente por quase metade das nossas emissões, segundo o relatório Net Zero Readiness Report 2023 .

Hoje, quem sofre mais com as consequências da insustentabilidade desse sistema são as populações em situação de vulnerabilidade, como mulheres, afrodescendentes, povos indígenas e populações periféricas em geral, sempre tentando transformar lugares que ainda não foram ocupados (justamente porque são de alto risco e menos atraentes para as gigantescas monoculturas de commodities ou para os agentes da especulação imobiliária urbana) em áreas habitáveis em que possam se abrigar. Mas, sem dúvida, cada vez mais gente vai ser afetada pela fritura climática e, em breve, todas as pessoas serão duramente atingidas. 

Nos arraiás, outra das antigas brincadeiras que animavam as noites era a de pular a fogueira sem se deixar chamuscar pelas labaredas. É claro que o sucesso da pessoa que se dispunha a “brincar” dependia de suas condições físicas e do tamanho do fogo. Havia quem pulava. Ainda há quem pule. Habilidades diferentes e privilégios sempre fizeram parte da civilização humana, em menor ou maior grau. Mas há limites. No caso do clima, se a fogueira planetária seguir sendo alimentada, em breve não haverá quem possa pular suas chamas cada vez mais inclementes. 

Ainda considero junho um mês muito especial. As celebrações típicas podem ter se transformado ao ponto de um espaço como o Parque da Água Branca realizar a “festa do morango”(!!!) em seu arraiá, e de um conjunto de organizações veganas anunciarem que, em sua festa junina, a maior do setor no país, seriam oferecidos, além dos quitutes tradicionais, “gostosuras de vários países como comida japonesa, indiana, árabe, congolesa, mexicana, italiana e também fast food como hambúrgueres, hot dog, pizzas, pastel de feira, salgados, tudo na versão vegana.” Ufaaaa. Não teria que ter comida neozelandesa “plantibeisedi” também? 

Apesar dessas quebras nas tradições culinárias, os pratos juninos típicos ainda resistem e, devido ao fato do milho ter sido abraçado pelo complexo agroalimentar dominante, as receitas feitas com ele sobreviveram e seguem incrivelmente populares, e a antiga pa’muñã indígena, hoje chamada de pamonha nas nossas grandes cidades, continua firme no menu, guerreira como os povos que a criaram. Mesmo se for preparada com grãos transgênicos e açúcar repleto de agroquímicos (ao invés de levar variedades crioulas diferentes, de acordo com o povo originário que a preparava), ela tem uma simbologia importante, inclusive por – milagrosamente(!) – manter em uso sua antiga “embalagem” natural: a própria palha que reveste a espiga do milho. 

Se você acha que a dimensão simbólica não tem relevância dentro da sociedade atual, com seu modelo produtivo baseado na mercantilização da vida, acho que vale refletir melhor. Ela é uma das chaves para mobilizar forças ancestrais profundas dentro de nós, que permeiam nossa existência como corpo coletivo. A própria imagem do fogo, como símbolo de transformação, segue em disputa. A madeira que alimenta as chamas de nossas fogueiras juninas, magnetizando  nossos olhares, pode, em manejos tradicionais, virar as cinzas que vão fertilizar o solo e não a poeira que ameaça transformar territórios vivos em áreas desoladas, em que a esterilidade predomina.

Nas festas deste período, os sons emitidos pela sanfona, pela zabumba e pela rabeca, ecoam dentro de nós, nos remetendo aos sons da própria natureza. As danças feitas de forma comunitária, como as que dão movimento às quadrilhas, nos conectam às antigas cirandas que marcaram nosso florescimento cultural. Por tudo isso, ainda me deixo encantar pela temporada junina, mantendo viva uma imensa vontade de retirar dela as transgenias que nos últimos tempos se infiltraram em sua corporalidade. Acho, sinceramente, que  isso é parte da tal luta da vez, a “luta pela maravilha”, termo cunhado por Paolo Demuru em seu livro “Políticas do encanto”, que está sendo lançado aqui no Brasil pela Editora Elefante.

Felizmente, para mergulhar de cabeça nessa luta, por ser uma ativista agroecológica, tenho acesso a arraiás sem OGMs, em que é possível saborear alegremente um cuscuz, uma broa de fubá e outras tantas delícias da chamada cultura da roça. Momento de reavivar as utopias, celebrar a ancestralidade, abrir espaço para o encantamento e, quem sabe, embora eu não seja católica e tenha sérias críticas ao patriarcado branco ocidental, pedir licença à Pachamama e fazer uma promessa para um dos três santos homenageados nas festas juninas: ei, São Pedro querido, que tal mandar água na medida certa para os locais que mais precisam e dar um tempo nas enxurradas nas regiões que já estão pra lá de afogadas? 

Susana Prizendt é arquiteta urbanista, integrante do Movimento Urbano de Agroecologia – MUDA e da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida.