Prostitutas são mulheres trabalhadoras – assim como você
Afinal de contas, podem ou não as trabalhadoras sexuais lutar por seus direitos?
Uma puta é aquela mulher que exerce uma atividade que, independente do termo usado, descreve também a pior das ofensas que pode ser dirigida às (outras) mulheres. Pois bem, então é isso o que eu sou: Monique Prada, trabalhadora sexual, ativista e feminista – muito prazer!
Recebo o convite para publicar regularmente em Mídia Ninja com muita felicidade e algum receio, pois certamente tocaremos em temas polêmicos. Temas que chegam a gerar embates violentíssimos mesmo entre pessoas de pensamento dito mais progressista. Afinal de contas, podem ou não as trabalhadoras sexuais lutar por seus direitos?
Algumas pessoas acreditam que sim, prostitutas podem e devem lutar pelos seus direitos.
Outras pessoas preferem que fiquemos restritas à nossa já histórica insignificância.
O mito de que uma mulher que trabalha com o corpo não pode se destacar em palavras, por exemplo, é aqui fortemente invocado. Vítimas ou pecadoras, o importante é que continuemos existindo – sempre às sombras!
Eu costumo usar em meus textos e vida a expressão “trabalhadora sexual”, já sabendo que muitas pessoas, ao ler, não compreenderão. Talvez cheguem mesmo a considerar isso um capricho, um eufemismo tolo, como se eu quisesse de algum modo higienizar meu vocabulário ou tornar mais aceitável socialmente a atividade que exerço. Na verdade, explico, este é o termo adotado internacionalmente já há algum tempo: considerando o peso negativo e estigmatizante da expressão “prostituta”, boa parte das associações de profissionais (sim, nós somos uma classe organizada de trabalhadoras e trabalhadores ao redor do mundo, e nos reunimos em associações, coletivos, sindicatos – tal como acontece com as outras classes de pessoas trabalhadoras) opta por esta outra expressão. E isso não acontece apenas para acentuar o fato de que trabalho sexual é, sim, um trabalho, mas também por que “prostituição” não é exatamente um termo preciso para descrever todas as atividades exercidas pelas pessoas que atuam na indústria do sexo.
Strippers, dommes profissionais, cam girls, atrizes de pornô e algumas acompanhantes são, assim como as prostitutas, trabalhadoras sexuais. Existem países nos quais algumas dessas atividades são ilegais delas, outras, não. Por exemplo, na maioria dos estados dos Estados Unidos, você pode ser uma stripper ou uma atriz pornô, ou mesmo uma assistente sexual – mas não pode ser uma prostituta (aqui se vê o caráter elitista das leis sobre trabalho sexual na maior parte do mundo operando…).
No Brasil, o termo ainda está em disputa: a Rede Brasileira de Prostitutas, fundada por Gabriela Leite (prostituta aposentada, quase socióloga, a idealizadora da marca Daspu nos deixou em 2013) insiste no uso do termo prostituta, enquanto nós, na CUTS, usamos a expressão “trabalhadora sexual” – de um modo ou outro, certo é que somos todas putas, como Gabriela gostava de ser chamada.
A CUTS, assim como a Rede Brasileira de Prostitutas, é um espaço político nacional de debate e luta por direitos das pessoas que atuam na indústria do sexo. Nascida no final de 2015, traz em si uma suave ironia: no final de 2013 (poucos meses depois da morte de Gabriela), é lançada uma nota do coletivo de mulheres da CUT – Central Única das Trabalhadoras e Trabalhadores, onde elas se posicionam contra o reconhecimento da prostituição como um trabalho, opondo-se à sua regulamentação. Esta nota teve o apoio explícito da Marcha Mundial de Mulheres e de alguns outros coletivos feministas. Então, se elas nos dizem que não somos trabalhadoras, a nós, que vivemos do trabalho sexual, só resta dizer: as prostitutas são, sim, mulheres trabalhadoras. Com todo o respeito às companheiras, mas precisamos reabrir este debate, e com a participação das trabalhadoras sexuais organizadas. Esperamos sim, poder seguir debatendo o tema. E seguiremos. Lutamos sim pelo reconhecimento de nossa atividade como um trabalho. Se não um trabalho “como outro qualquer” (o que invisibilizaria suas peculiaridades e mesmo a condição de clandestinidade à qual somos submetidas), mas um trabalho, exercido por um número grande de pessoas ao redor do mundo, em sua grande maioria mulheres pobres lutando por sustentar as suas famílias.
Nunca esperem de mim uma defesa cega e festiva da prostituição, até porque uma atividade que existe e resiste há tantos séculos, apesar da forte estigmatização, discriminação e segregação que sofrem as pessoas que a exercem, e em especial,as mulheres trabalhadoras, não parece estar precisando de defesa. Infelizmente não posso dizer o mesmo de nós, pessoas que a exercemos, muitas vezes de modo precário, e sempre à margem da sociedade.
O trabalho sexual não é e nunca foi ilegal no Brasil. Tramitando num Congresso fortemente conservador , o projeto de lei que visa regulamentar a atividade vem encontrando algum apoio mas também violenta oposição de vários setores da sociedade organizada. Construído pelo gabinete do deputado Jean Wyllis (PSOL – RJ) em conjunto com a Rede Brasileira de Prostitutas, o projeto merece, senão o nosso apoio integral, todo o nosso respeito, no mínimo por ir de encontro aos anseios da classe de trabalhadoras à qual se destina. No sentido oposto, temos o PL 377\11, de autoria do deputado João Campos (PRB – GO), que pede a criminalização da contratação de serviços sexuais – nos mesmos moldes que temos desde 1999 na Suécia e, mais recentemente, na França. É um modelo que, apesar de sugerir que há uma penalização apenas ao contratante, mostra-se danoso na prática às mulheres que vivem desta atividade, e que com essa lei teriam menos espaço para negociação com o cliente, assim como precisariam se deslocar para lugares mais ermos e inseguros para exercer o seu trabalho. Complementando este projeto, há ainda uma solicitação, apresentada pelo deputado Flavinho (PSB_SP), de retirada da atividade da CBO (Classificação Brasileira de Atividades), o que é um ataque grave aos direitos deste grupo de trabalhadoras. Aliás, cabe lembrar de quem falamos: o deputado Flavinho foi o mesmo que, em discurso, afirmou que as mulheres “de verdade” não querem ser empoderadas, mas cuidadas, e que as parlamentares feministas “não sabem o que é ser amadas”.
Num momento em que se ataca fortemente os direitos de todas as pessoas trabalhadoras, nós seguimos na luta ainda por conquistar uns poucos direitos. Dentre eles o direito de existir para além dos guetos e das esquinas onde estivemos até aqui restritas. Neste momento, me parece que mais importante que lutar pela regulamentação da atividade, a luta contra o retrocesso é o que nos toma tempo – e neste sentido, estamos todas juntas com as outras trabalhadoras que, com a precarização dos direitos trabalhistas e a aprovação da terceirização irrestrita, estão sob o sério risco de ter quase os mesmos direitos trabalhistas que… isso mesmo, prostitutas.
A luta portanto, minhas caras, não deve estar para nós como algo que acabe por nos fazer excluir umas às outras. Pelo contrário, que sigamos procurando os pontos de convergência em nossas lutas. É isso o que nos fortalecerá.