Proposta de Bacellar sobre segurança do Rio é puro populismo punitivista
Monitoramento facial, repressão e encarceramento em massa não são soluções para a violência
por Dani Balbi e Thiago Rodrigues
O problema da segurança pública é, certamente, um dos mais importantes, graves e urgentes que enfrenta a sociedade brasileira em geral, e o nosso Estado, em particular. A violência armada, a coação, o controle territorial, a extorsão, os roubos, furtos, estupros e feminicídios tornaram-se horrores cotidianos que atingem, sobretudo, os mais pobres, periféricos, favelados, vulneráveis e racializados. Exatamente por essas razões, a esquerda – e em especial nós, comunistas – não podemos calar diante do desafio da segurança pública.
A direita e a extrema-direita sempre se consideraram proprietárias do tema da segurança pública, construindo campanhas eleitorais e mandatos políticos sobre a plataforma do “combate ao crime” entendido, sempre, como mais repressão, maior violência policial, aumento do orçamento para a compra de armas, veículos e equipamentos para as polícias, acompanhada da construção ininterrupta de presídios. As “soluções” propostas pelos campos conservador e reacionário seduzem parte considerável da sociedade brasileira que, justificadamente, teme pelo próprio bem-estar, pela proteção de seus bens materiais e pela preservação da integridade física e mental dos seus entes queridos.
No entanto, não há solução fácil para um problema complexo como o da segurança pública. Em primeiro lugar, há raízes históricas marcadas literalmente a ferro e fogo nas estruturas da sociedade brasileira; uma sociedade nascida da violência genocida, da espoliação colonial, do patriarcalismo, do racismo e da escravidão. Uma sociedade com brutais clivagens de raça, classe e de gênero que apenas foram aprofundadas com a entrada do país na dinâmica do capitalismo globalizado.
Em segundo lugar, existem as muitas especificidades regionais de um país grande e diverso, com variados grupos vulnerabilizados que demandam o respeito aos seus direitos e projetos de vida. Há, ainda, o crescimento do crime organizado, liderado por hábeis financistas e empresários que transitam entre a economia legal e a ilegal, deixando que o estigma da criminalidade recaia sobre as populações racializadas, pobres, faveladas e periféricas. Atravessando todos estes elementos está a crença socialmente arraigada – e explorada pelo discurso das direitas – de que a punição, a repressão e o castigo são a resposta para as múltiplas violências da criminalidade no Brasil.
A intelectualidade e a militância de esquerda têm sido enfáticas e precisas ao mostrar como a lógica do ‘olho por olho, dente por dente’ não resolve o problema da segurança pública, mas, ao contrário, aprofunda e intensifica as suas manifestações, reproduzindo uma racionalidade perversa que compromete os laços sociais, a vida individual e o Estado Democrático de Direito. Apesar disso, as propostas das direitas ainda prevalecem no debate público e seguem dominando a agenda legislativa e as ações da maioria das cidades e estados do país.
Ódio não é bom conselheiro
Boa no diagnóstico e na denúncia, as esquerdas não têm o mesmo desempenho na hora de enfrentar os discursos da direita sobre segurança pública. As matérias-primas da direita são o ódio, o medo, os estereótipos e os preconceitos de raça, religião, classe, orientação sexual, identidade e gênero. Trata-se de um poderoso material, pois reverbera no senso comum como verdades assentadas e inquestionáveis. É difícil, certamente, contrapor com análises críticas e científicas argumentos baseados em paixões tão poderosas como o ódio e o medo.
Isso, no entanto, não pode ser desculpa para que não enfrentemos as direitas disputando o tema da segurança pública. Antes de tudo, é preciso entender e aceitar que existe, de fato, um problema grave e multifacetado chamado ‘segurança pública’ e que as pessoas que mais sofrem com a violência do crime organizado, com a violência cotidiana e com os enfrentamentos entre facções e as forças policiais precisam de respostas urgentes e imediatas.
A crítica é necessária, o diagnóstico é fundamental, mas a prática precisa responder aos anseios mais básicos das brasileiras e brasileiros. Como comunistas, precisamos lembrar do próprio Karl Marx quando defendeu que a práxis é a realização efetivamente transformadora que se dá quando a teoria atinge o mundo do real, e quando o mundo material modela o pensar.
Em outras palavras, é preciso mostrar onde a direita procura manipular emoções e argumentos em nome da manutenção da atual ordem socioeconômica desigual e injusta, mas também indicar caminhos que sejam eficientes e eficazes para fazer a vida dos mais vulneráveis menos violenta e mais digna. Devemos fazer isso sempre fiéis aos compromissos com a dignidade humana e com a justiça social, sem renunciar aos princípios que nos dão sentido e força.
Pacote pré-eleitoral
Hoje, no estado do Rio de Janeiro, quando se aproxima o ano eleitoral e diante da piora sempre progressiva da segurança da população, voltam a proliferar propostas punitivistas que insistem na mesma chave da repressão. Uma destas iniciativas é o projeto de lei 5908/2025 proposto pelo atual presidente da ALERJ, deputado Rodrigo Bacellar (PL).
Chamado de “Pacote de enfrentamento do crime violento – PEC/RJ”, o projeto é um conjunto de propostas que, apesar da aparência técnica que beira a ficção científica, não inovam na abordagem do problema da segurança pública, tampouco propõem ações que já não tenham sido comprovadamente falidas no enfrentamento da violência criminal. O PL tem como filosofia a ideia de que o sistema penal é um mecanismo de pura vingança contra o criminoso, sem nenhuma função social e sem nenhum objetivo de ressocialização. Comentaremos alguns dos pontos do projeto cuja íntegra pode ser encontrada aqui:
Bastaria dizer que o PL é inconstitucional do começo ao fim. Em primeiro lugar, apesar de a execução da política penal ser competência dos Executivos Estaduais, as matérias tratadas pelo projeto dependem de legislação federal, estando ligadas, por exemplo, à Lei de Execução Penal ou ao Estatuto da Criança e do Adolescente. São propostas, portanto, que já nascem inviáveis, pois violam a Constituição Federal pretendendo, por exemplo, abolir direitos de apenados e de ex-detentos que já pagaram pelos seus crimes ou tratar menores em confronto com a lei como se fossem criminosos adultos.
O mote central do projeto de lei é o monitoramento eletrônico de egressos do sistema prisional por meio de um sistema de câmeras e dispositivos de reconhecimento fácil operados por inteligência artificial. Essa medida supostamente controlaria os passos de quem já cumpriu pena de modo que essas pessoas fossem desincentivadas a cometer novos crimes. A ideia é esdrúxula como proposta e antiética e inconstitucional, pois pressupõe que um(a) egresso(a) é ainda um(a) criminoso(a) em potencial, um ser humano para sempre perigoso.
Conceitos bizarros
Ao tentar justificar a proposta, o PL apresenta conceitos bizarros como o de “reincidência presumida”, como se fosse possível prever uma nova prática criminosa de alguém que já pagou a sua dívida com a sociedade. E pior, o PL supõe que seja aceitável violar direitos constitucionais de uma pessoa já sem dívidas com a Justiça apenas pelo fato de um dia ela ter infringido a Lei e ter, por isso, cumprido pena.
Segundo dados do DEPEN divulgados em 2022, a taxa média de reincidência no Brasil, nos primeiros cinco anos após o cumprimento da pena, é de 38,9% . Esse número é alto e preocupante, ainda que menor do que a média de outros países, como dos Estados Unidos que é, segundo dados do Departamento de Justiça, de 76% . As principais causas para a reincidência nos EUA e no Brasil são a falta de apoio para a reinserção social, a falta de capacitação profissional durante o período de reclusão, os baixos níveis de escolaridade, o grande preconceito e estigma social vinculados aos egressos e egressas, os problemas de saúde mental e de abuso de álcool e drogas etc. .
As altas taxas de reincidência são a prova retumbante do fracasso do sistema de justiça penal. As prisões não promovem a capacitação profissional, não oferecem oportunidades de estudo, não são espaços para a recuperação e para a reinserção social. Ao contrário, o sistema penitenciário é uma escola do crime, é o quartel-general do crime organizado, local de recrutamento para as facções e base operacional para atividades criminosas.
O PL de Rodrigo Bacellar não toca na questão fundamental: no Brasil, prendemos muito e prendemos muito mal. Com mais de 800.000 presos, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. O sistema penitenciário é sucateado, sobrelotado e não oferece programas continuados e consistentes de profissionalização e formação. Programas de trabalho para detentos(as), com pequena compensação financeira e/ou diminuição da pena, estão relacionados a tarefas de baixa capacitação em regime de superexploração laboral. O nascimento, crescimento e expansão pelo Brasil das facções criminosas, como o PCC e o CV, são a prova dramática de que o atual sistema prisional é falido e prejudicial à segurança do povo brasileiro.
Dados da Rand Corporation, um instituto de pesquisa de direita dos EUA, indicam que programas de educação para detentos produzem 43% menos chance de que o egresso reincida, afetando 13% do conjunto geral de reincidências. Enquanto isso, estudos científicos e dados do próprio Departamento de Justiça dos EUA apontam que não há qualquer prova robusta de que a aplicação de políticas de monitoramento eletrônico tenha impactado para melhor as taxas de reincidência naquele país . São medidas assim que este PL procura copiar para o estado do Rio de Janeiro.
Ao invés de propor recursos para medidas eficazes de reforma prisional voltadas à ressocialização do preso e a programas de apoio e reinserção do egresso do sistema prisional, o PL sugere gastos certamente milionários do dinheiro público em câmeras de vídeo espalhadas pelas cidades, programas de reconhecimento facial, sistemas de inteligência artificial, centrais de controle computadorizadas, entre outras medidas mirabolantes e sem nenhuma comprovação estatística ou científica de eficácia e eficiência.
É possível entender por que não interessa à ultradireita propor programas de reinserção de detentos(as), já que eles não satisfazem a demanda do seu eleitorado por mais repressão, não movimentam licitações milionárias das empresas privadas nacionais e estrangeiras de sistema de segurança e, principalmente, ‘correm o risco’ de darem certo, ou seja, de diminuírem efetivamente o crime e a reincidência.
Sem visita íntima
Os problemas do PL não param por aí. O Art 11 propõe que apenados por crimes hediondos fiquem privados de visita íntima. A Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime), que alterou a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984), estabeleceu que as visitas íntimas estão proibidas para condenados em regime disciplinar diferenciado (RDD), situação em que o interno não pode ficar por mais de 02 anos (Art. 52 ∮ 1 e ∮ 2). A medida, portanto, se aplica no direito penal brasileiro apenas aos condenados para cumprir pena em RDD. A proposta de Bacellar, curiosamente, fere a legislação federal que foi apresentada em 2019 pelo então Ministro da Justiça Sergio Moro durante o governo do “mito do PL” Jair Bolsonaro.
O Art. 12 do projeto propõe que os/as presos(as) paguem pela sua manutenção no sistema penitenciário de modo que todos(as) que tenham condições de pagar, arquem com parte de suas próprias despesas. Eis um bom exemplo de demagogia punitivista, pois pode parecer “justo” que o orçamento público não seja pressionado para manter quem agiu contra a sociedade. Ora, em primeiro lugar, o projeto de lei não indica como seria realizada a avaliação quanto à capacidade de pagar ou não. Em segundo lugar, confiando nos dados do INFOPEN no Ministério da Justiça, das 45.962 pessoas detidas no estado do RJ, 61% são negros, de baixa escolaridade e de baixa renda. Este é o perfil dos presos/condenados porque a justiça penal no Brasil é um mecanismo de controle social e de criminalização da pobreza racializada . Com uma justiça criminal destas, quantos teriam condições de pagar pela ‘estadia’? O projeto de lei não toca nesse ponto, tampouco no problema do super-encarceramento: ao invés de propor medidas que revertam o aprisionamento em massa de pequenos(as) criminosos(as) pobres e negros(as), o projeto trata de um fantasioso “ressarcimento parcial” das despesas por preso aos cofres públicos.
Por fim, o Art. 14 defende que adolescentes que tenham cometido “atos infracionais cometidos mediante violência ou grave ameaça à pessoa” permaneçam em regime de internação por, no mínimo, dois anos. Este artigo tem problemas de princípio e de forma. Primeiro, a medida socioeducativa de internação é medida prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que não pertence ao sistema de justiça penal. Em segundo lugar, a “internação” no ECA é considerada medida socioeducativa e não pena, estando num campo conceitual completamente diferente daquele da prisão em regime fechado para adultos. Portanto, o PL tenta passar um “cavalo de Tróia” da redução da maioridade penal, tratando a medida socioeducativa de internação como pena e o DEGASE como presídio, duas propostas ilegais e inconstitucionais. Além disso, num incrível ato falho, o PL admite que as unidades de internação de menores funcionam, na prática, como presídios para jovens, contrariando o princípio educativo, preventivo e de socialização que consta no ECA.
Recentemente, testemunhamos os incríveis resultados de três megaoperações contra o PCC que, sem disparar um tiro, causaram real prejuízo ao coração financeiro da maior facção do Brasil. Vimos como o uso de inteligência policial, eficiência investigativa e coordenação entre União e Estados enfraqueceram efetivamente o PCC, revelando que o cérebro e a alta lucratividade do crime organizado estão na Faria Lima, nos bairros de luxo, nas fintechs, nos bancos de investimento e nas empresas de fachada.
O crime organizado é a matriz principal de uma série de atividades criminosas que se espalham pela sociedade, trazendo dor, sofrimento, medo e morte. Combater o crime organizado é possível, como mostraram as operações Quasar, Tank e Carbono Oculto. O alvo deve ser o coração financeiro do crime organizado. As prisões, superlotadas e sem oferecer qualquer alternativa de vida digna e legal aos presos e presas, continuam sendo a ‘escola do crime’ e o ‘quartel-general’ dos soldados do crime organizado.
O PL apresentado pelo deputado Rodrigo Bacellar não se preocupa com o verdadeiro centro de força do crime organizado. O projeto pretende punir ainda mais os que já são punidos, ou seja, aqueles e aquelas que menos oportunidades têm de sair da vida do crime. Os alvos do projeto são aqueles e aquelas que pertencem aos níveis mais baixos e vulneráveis da hierarquia do crime. São os(as) que não têm advogados caros, não possuem bens ou contas no exterior, não controlam redes logísticas complexas, não manejam esquemas intrincados de transferência de capital e de lavagem de dinheiro.
Enxugando gelo
Ao pretender monitorar e prender novamente egressos do sistema prisional, o PL tem como meta tornar praticamente impossível que uma pessoa pobre, favelada, periférica e racializada vença o círculo nefasto de miséria, indignidade, violência, crime e punição, pois não se preocupa com a reinserção do egresso ou sua ressocialização. Portanto, não tem qualquer interesse pela solução estrutural para a violência e a criminalidade e sim por “enxugar gelo” com a falsa ilusão de que câmeras de vídeo e sistemas de inteligência artificial vão resolver o problema da criminalidade e da violência no Rio de Janeiro.
O PL não apresenta justificativa científica para a proposta de monitoramento eletrônico de egressos porque tais evidências não existem. As pesquisas disponíveis no Brasil e no exterior, incluindo aquelas realizadas por pesquisadores de direita, nos levam a concluir que os princípios e propostas do PL estão fundamentalmente equivocados. Além disso, há flagrantes casos de inconstitucionalidade que, certamente, não passaram despercebidos pelo gabinete do senhor deputado. Por que, então, constam no PL?
As propostas desconexas, sem comprovação científica e inconstitucionais estão neste projeto de lei porque ele é uma peça de populismo punitivista que manipula o justificado e real temor da população fluminense com a violência e o crime, oferecendo supostas ‘soluções’ que parecem excelentes, modernas e eficientes, sem que haja qualquer indício concreto de eficiência e eficácia.
O PL busca criar uma situação política às vésperas das disputas eleitorais de 2026, pois se for rechaçada pela ALERJ, será brandida pelo campo da direita como prova de que a oposição ‘defende bandido’ ou ‘impede a direita de trabalhar’. Se o PL for aprovado e sancionado, será certamente questionado no STF e os magistrados devem reafirmar o quanto ele é flagrantemente inconstitucional. Acontecendo isso, a ultradireita usará o fato para reforçar as narrativas golpistas sobre a ‘ditadura do STF’, a ‘ditadura de toga’ e outros absurdos. O PL é, desse modo, um movimento calculado para ser usado em propaganda eleitoral.
Quem quer cuidar de verdade da questão da segurança pública deve ter a coragem de buscar as políticas que têm justificativa convincente, base científica e resultados na experiência real. Medidas assim não interessam à direita populista porque não alimentam os discursos de ódio e as crenças nas soluções fáceis para problemas muito difíceis.
Está evidente que é urgente uma reestruturação completa do sistema carcerário do estado que deve vir acompanhada de uma reforma na justiça penal. As prisões precisam deixar de ser as instituições que, na prática, organizam o crime organizado. Para tanto, é fundamental conduzir as políticas punitivas com racionalidade científica e não com populismo demagógico. Isso implica em estudar o que já deu certo aqui e em outras situações similares e ousar em políticas que quebrem o círculo de violência e de marginalização.
O Estado deve buscar parcerias com o setor privado e com o governo federal para permitir a capacitação profissional e aumentar o nível de educação formal dos(as) detentos(as), garantindo renda mínima e oportunidades de empregos que dignifiquem o trabalho. É cruel e irrealista supor que a oferta de subempregos e de esmolas demovam seriamente que pessoas em extrema necessidade ou falta de alternativas não incorram em atividades criminosas.
Manipular o medo para conseguir votos é uma tática antiga, mas que, infelizmente, funciona. Enfrentar para valer o crime organizado e a violência exige vontade de verdadeiramente resolver o problema com seriedade e compromisso para com o povo mais sofrido do nosso Estado, sem renunciar ao princípio básico da defesa da dignidade humana.
*Thiago Rodrigues é cientista político, professor do Instituto de Estudos Estratégicos da UFF e secretário de formação e propaganda do PCdoB de Niterói.