Preservar o humano em meio à ruína
Qual é o impacto psíquico de viver sob a constante sensação de opressão, com a impressão de que a humanidade chegou a um beco sem saída? Como isso repercute em nossa vida íntima, nos nossos sentimentos mais profundos?
*Por Rima Awada Zahra
Vivemos um sofrimento coletivo que atravessa fronteiras e chega até nós como ondas incessantes. Guerras, deslocamentos forçados, desastres ambientais e epidemias invadem diariamente nossas casas através das telas, tornando-se parte da paisagem cotidiana.
Essa exposição constante a imagens e relatos de sofrimento global tem produzido efeitos emocionais contraditórios, mas igualmente alarmantes: de um lado, o esgotamento emocional de quem sente demais; de outro, a anestesia afetiva de quem, por defesa, já não sente mais nada. Ambas as reações — a fadiga por compaixão e a dessensibilização — são respostas humanas compreensíveis diante do excesso de dor, mas revelam o quanto estamos despreparados para lidar de forma ética e saudável com o sofrimento do outro.
É claro que a intensidade desse impacto varia: quem tem familiares ou amigos em regiões em guerra sente a angústia de forma ainda mais profunda. A isso damos o nome de interseccionalidade — são as conexões afetivas, identitárias e sociais que nos aproximam de determinados tipos de sofrimento. No entanto, mesmo quem está geograficamente distante não passa incólume. A dor coletiva chega até nós como seres humanos por meio das notícias, das redes sociais e das vozes — muitas vezes jovens — que, ao vivo, narram seus horrores e cravam essas histórias em nossos corações.
São notícias que nos desalojam da esperança e nos lançam no desespero, deixando-nos diante de uma pergunta angustiante: qual é o impacto psíquico de viver sob a constante sensação de opressão, com a impressão de que a humanidade chegou a um beco sem saída? Como isso repercute em nossa vida íntima, nos nossos sentimentos mais profundos?
Quando projetamos o futuro, não o concebemos como um cenário de destruição. Nossos sonhos não incluem a guerra interrompendo nossas vidas. Quando o medo da guerra invade nossos pensamentos, é porque, de algum modo, já estamos vivendo dentro de uma realidade trágica.
A inclinação humana é a de construir, realizar e buscar sentido. Mas viver em sociedade e dentro de uma cultura muitas vezes nos distancia dessa escuta interior, abafando a voz que nos orienta e dá propósito à nossa existência.
A guerra é a negação radical da vida em plenitude. Ela reduz a existência à luta pelo mínimo: o direito de sobreviver. Povos indígenas, negros, LGBTQIAPN+, pessoas em situação de rua e tantos outros grupos no Brasil enfrentam há séculos guerras não declaradas, lutando não por privilégios, mas pelo direito básico de existir em paz e expressar plenamente sua potência, e não apenas sobreviver.
No Brasil, essas interseccionalidades moldam também a forma como cada pessoa é atingida pelas guerras externas. Quem já vive a guerra cotidiana de um país que se diz cordial, mas que promove desigualdades e violências estruturais, carrega uma alma exausta. Para essas pessoas, cada nova guerra no mundo é um peso adicional sobre um corpo já sobrecarregado de lutas diárias.
Por isso, a guerra nos afeta sempre, embora de maneiras diferentes para cada um. Ela nos mostra, dolorosamente, que a humanidade é capaz de criar eventos que roubam sonhos, destroem comunidades inteiras e produzem lutos intermináveis que atravessam gerações.
A fadiga emocional e a indiferença são, assim, dois extremos de um mesmo dilema: uma queima por empatia que esgota e uma defesa que congela. Ambas evidenciam a dificuldade de sustentar a compaixão em um mundo saturado de dor.
Talvez a pergunta mais urgente de nosso tempo não seja apenas como salvar o planeta, curar os feridos ou alimentar os que têm fome, mas como permanecer humanos diante do inumano. Como seguir sentindo, mesmo que um pouco menos, sem se tornar indiferente. Como cuidar sem adoecer, acolher sem colapsar.
Viver em tempos de guerra é admitir que somos capazes não só de construir, mas também de destruir aquilo que deveríamos viver como plenitude. Essa consciência amarga o coração e gera uma incredulidade difícil de suportar. É duro aceitar que sejamos capazes de provocar tamanha dor e morte.
Por isso, precisamos estar atentos: quanto mais nos inundamos de notícias de guerra — em sua crueza e brutalidade —, menor se torna nossa capacidade de imaginar futuros possíveis. A vida vai se reduzindo ao presente imediato da destruição.
Não podemos sentir tudo o tempo todo, mas tampouco podemos deixar de sentir por completo. O desafio da nossa época talvez seja este: seguir humanos, mesmo diante do inumano. E isso exige cuidado: porque sentir, hoje, demanda estrutura. A compaixão não se improvisa; ela precisa ser cultivada, sustentada e protegida contra a exaustão e contra o esquecimento.
Diante de situações opressoras, os seres humanos podem reagir de diferentes formas: resignando-se, isolando-se, alienando-se, sentindo-se impotentes ou escolhendo resistir. O alerta da psiquiatra palestina Dra. Samah Jabr, em seu livro Sumud em tempos de genocídio, nos lembra que a pior dessas respostas é a paralisia da impotência — um colapso que ameaça destruir o que há de mais vital em nós.
É claro que não conseguimos sentir plenamente o tempo todo. Ninguém suporta a dor do mundo de forma contínua. Mas tampouco podemos nos anestesiar ou nos afastar completamente do sofrimento alheio. O desafio ético e emocional do nosso tempo talvez seja justamente esse: manter-se humano diante do inumano. E isso exige cuidado e preparo. Sentir, hoje, não é um gesto espontâneo: requer força interior, sustentação emocional e disposição para não ceder à exaustão. A compaixão não acontece por acaso — ela precisa ser cultivada, alimentada, protegida do cansaço e do esquecimento e, sobretudo, conduzida para a ação.
Por isso, o conceito palestino de Sumud me toca profundamente. Ele não nega a dor. Aqueles que o praticam também estão feridos, também sentem o peso da violência. Mas se recusam a deixar que a dor os reduza à impotência. Sumud é, essencialmente, a preservação de um núcleo saudável dentro de si, uma resistência íntima que continua a nutrir a vida, mesmo em meio à destruição e à agonia. É a recusa em deixar que o sofrimento tenha a última palavra.
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* Rima awada Zahra é libanesa brasileira, psicóloga, escritora, e coordenadora da pós-graduação do curso de Psicologia e Migração da PUC MG. Autora e coautora de obras que reúnem experiências nas áreas da migração, educação, e saúde mental com população em situação de vulnerabilidade social e que são reconhecidos por entidades como a FNLIJ, a Biblioteca nacional, e selecionados para o Clube de Leitura dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU. Organizou e traduziu o livro Sumud em tempos de genocídio da psiquiatra palestina Drª Samah Jabr e traduziu os Diários de Gaza, ambos pela editora Tabla.