Preservar a vida e transformar a política: a liderança das mulheres indígenas rumo à COP30
Mulheres indígenas e de florestas reafirmam na COP30: justiça climática requer justiça de gênero e território.
por Letícia Doormann*
“As mulheres indígenas são as guardiãs do planeta para a cura da Terra.” Com essa certeza, mulheres indígenas e das florestas tropicais da América Latina buscam fazer ouvir suas vozes na COP30, reafirmando seu papel central na agenda climática global e lembrando que justiça climática só será possível com justiça de gênero e territorial.
Pela primeira vez na história, uma Conferência sobre Mudanças Climáticas acontecerá na Amazônia — terra do urucum e da resistência — em Belém do Pará. Lá, as mulheres indígenas e das florestas tropicais chegarão com uma mensagem clara: a luta pela justiça climática é inseparável da luta pela vida, pelos corpos e pelos territórios.
O caminho para a COP30
Se a crise climática não é neutra em termos de gênero, sua solução também não pode ser. Dos Andes ao Caribe, do Cerrado à Amazônia, organizações indígenas da América Latina e do Caribe vêm se articulando para chegar à COP30 com uma voz mais forte, coletiva e articulada.
Esse caminho tem sido construído por meio de inúmeros encontros, mobilizações e uma profunda articulação territorial, com grande protagonismo das mulheres. Entre os momentos-chave estão as Pré-COPs territoriais, onde foram definidas prioridades comuns; os espaços de articulação em torno da campanha “A Resposta Somos Nós”, que fortaleceram alianças entre organizações e redes; e a Marcha das Mulheres Indígenas, em Brasília, onde milhares de lideranças reafirmaram que não há justiça climática sem justiça de gênero, sem territórios demarcados e sem a voz de quem protege a vida.
Sob a liderança da ANMIGA (Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade), foi lançada a carta “Nosso corpo é território! Somos as guardiãs do planeta pela cura da Terra!”, uma declaração que une corpos, territórios e espiritualidade na defesa da vida.
Na carta, as mulheres exigem a demarcação e proteção dos territórios, o reconhecimento de seu papel na governança climática e o fim de todas as formas de violência contra seus corpos e comunidades. Reivindicam políticas públicas que garantam saúde, educação e participação política, além do fortalecimento de fundos próprios geridos por mulheres indígenas.
A liderança das mulheres indígenas e comunitárias emerge como uma das forças mais potentes do nosso tempo — uma força que defende a vida, protege os ecossistemas e propõe novas formas de habitar e se relacionar com a Terra, baseadas no cuidado e na reciprocidade.
Corpo e território
Quando as mulheres indígenas afirmam que “o corpo é território”, não falam em metáforas. É uma verdade política e cotidiana: a violência contra seus corpos reflete a devastação de rios, florestas e montanhas.
Em sua luta, elas não separam a violência de gênero da violência territorial, nem o racismo do saque ambiental — tudo está conectado. Como aponta Jozileia Kaingang, diretora da ANMIGA, as mulheres indígenas compreendem que justiça climática, direitos territoriais e direitos humanos são inseparáveis. “Para garantir que as mulheres indígenas vivam sem violência e com participação política, precisamos de direitos territoriais assegurados. Sem isso, também não é possível enfrentar as mudanças climáticas”, afirma.
A ofensiva é concreta. A América Latina segue sendo a região mais perigosa do mundo para quem defende o meio ambiente e a vida. Em 2024, 82% dos assassinatos de defensores ambientais no mundo ocorreram aqui. Ainda assim, os recursos prometidos para enfrentar a crise climática mal chegam a quem está na linha de frente: menos de 1% dos fundos globais vai diretamente às comunidades, e, desse percentual, apenas 1,4% é destinado a organizações de mulheres.
Por isso, as vozes se levantam em defesa dos corpos, dos territórios livres do extrativismo e das florestas vivas. Reconhecer sua liderança, fortalecer suas organizações e garantir seus direitos é essencial para construir soluções climáticas justas e sustentáveis.
Vozes políticas e alianças que sustentam
Hoje, lideranças como Sônia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas, Célia Xakriabá, deputada federal, e Joênia Wapichana, presidenta da FUNAI, estão transformando as estruturas do Estado por dentro, impulsionando políticas climáticas e sociais baseadas nos saberes tradicionais e nas realidades dos territórios.
Mas a força das mulheres indígenas ultrapassa as fronteiras do Brasil. Na Amazônia, lideranças como Fanny Kuiru, da COICA (Confederação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica), levaram as lutas territoriais ao reconhecimento internacional, defendendo direitos coletivos nos espaços de decisão global. No Equador, a CONFENIAE (Confederação das Nacionalidades Indígenas da Amazônia Equatoriana) promove, sob liderança feminina, projetos de reflorestamento comunitário, soberania alimentar e revitalização de medicinas tradicionais. No Peru, a AIDESEP (Associação Interétnica de Desenvolvimento da Selva Peruana) e lideranças como Tabea Cacique fortalecem a governança indígena e a defesa dos direitos das mulheres amazônicas. Na Bolívia, Wilma Mendoza, da CNAMIB (Confederação Nacional de Mulheres Indígenas da Bolívia), promove processos comunitários e economias próprias lideradas por mulheres como resposta às mudanças climáticas.
Na Mesoamérica, a Coordenadora Mesoamericana de Mulheres Líderes Territoriais (CMLT) articula uma rede regional que promove o intercâmbio de saberes ancestrais e a defesa das florestas. No âmbito global, a Aliança Global de Comunidades Territoriais (AGCT) consolida um movimento internacional que exige participação direta nas decisões climáticas e acesso a financiamento sem intermediários, colocando as mulheres territoriais no centro da ação e das negociações climáticas.
Nesse tecido de resistências e propostas, mulheres indígenas e de comunidades florestais desempenham papel essencial: impulsionam ações climáticas, constroem plataformas políticas, protegem a biodiversidade e fortalecem modelos de economia e governança baseados no cuidado, na autonomia e na reciprocidade com a natureza. Essas redes e alianças mostram que as mulheres indígenas da América Latina não apenas defendem seus territórios, mas também constroem alternativas concretas e sustentáveis diante da crise climática, social e ambiental.
Uma mudança profunda
A COP30 representa uma oportunidade histórica para que as vozes das mulheres indígenas da América Latina e do Caribe sejam ouvidas no cenário global. Não se trata apenas de participar de painéis ou eventos, mas de garantir que seus conhecimentos, experiências e demandas orientem decisões que impactam o futuro do planeta.
Da Cúpula dos Povos à COP Indígena, da Assembleia de Mulheres aos espaços oficiais, sua presença mostrará que soluções sustentáveis nascem dos territórios, do cuidado com a biodiversidade e de uma relação equilibrada com a natureza.
Sua participação na COP30 será fundamental para reorientar a agenda climática global, pois sua luta aponta para uma transformação profunda: mudar valores, estruturas de poder e relações humanas para construir um futuro mais justo, sustentável e em harmonia com a vida.
É hora de ouvir e agir. Fortalecer suas vozes, apoiar suas organizações e exigir compromissos concretos dos governos é essencial para garantir a proteção dos territórios, os direitos coletivos e a própria vida.
—-
*Leticia Doormann é socioecóloga e diretora executiva da TINTA (The Invisible Thread), uma plataforma global de facilitação dedicada a fortalecer os esforços de povos indígenas e organizações comunitárias na proteção da natureza, na defesa dos direitos e na luta pela justiça climática.