Precisamos falar sobre o Cerrado e o PL da Devastação
O projeto agora retornará para a Câmara dos Deputados e, se aprovado, passará pela última instância: a aprovação ou veto do presidente Lula

No dia 21 de maio, por 54 votos a favor e 13 contra, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei 2.159/2021, que ficou popularmente conhecido como o “PL da Devastação” por propor a flexibilização de regras de licenciamento ambiental no Brasil. O projeto agora retornará para a Câmara dos Deputados e, se aprovado, passará pela última instância: a aprovação ou veto do presidente Lula
O que muda com o PL da Devastação?
O Projeto é focado no processo de licenciamento ambiental no país, propondo alterações que flexibilizam e fragilizam ainda mais a forma como são obtidas as licenças por parte dos empreendimentos solicitantes.
Uma das alterações mais drásticas é a proposta de obtenção de licença por meio da autodeclaração do empreendedor, chamada de “Licença por Adesão e Compromisso (LAC)”, que retira a necessidade de análise técnica prévia de qualquer órgão de fiscalização competente, com exceção para os casos categorizados como de “alto risco ambiental”.
Nessa suposta “desburocratização” são eliminadas as necessidades de estudos prévios de impacto ambiental e a definição de medidas compensatórias, além do enfraquecimento dos órgãos técnicos ambientais que fazem esse tipo de avaliação de risco.
A “burocratização” virou chavão na boca de parlamentares favoráveis ao PL da Devastação, ligados ao agronegócio, que alegam que o processo de licenciamento ambiental no Brasil é moroso e “atrapalha” o desenvolvimento econômico.
Um levantamento recente feito pela Agência Lupa contesta esse tipo de argumento. A organização contabilizou as licenças ambientais que foram emitidas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) nos últimos 10 anos e o total chegou a 6.100 licenças, o que se traduz em uma média de 560 licenças por ano, 49 por mês e 2 licenças por dia útil.
A pesquisa aponta que os setores mais beneficiados foram o de petróleo e gás, mineração e hidrelétricas, que concentraram, ao menos, 68% dos licenciamentos.
E como isso pode afetar o Cerrado e seus povos?
O Cerrado, conhecido como o “berço das águas” do Brasil, enfrenta há décadas um processo de ecogenocídio que está acabando com a sua sociobiodiversidade. Em 2024, de acordo com o Relatório anual do MapBiomas, a região continuou a liderar em área desmatada no país, com 652.197 hectares perdidos — mais da metade do total nacional.
A região do Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) concentrou 75% desse desmatamento, impactando diretamente territórios indígenas e quilombolas, que registraram perdas significativas de vegetação nativa, além das ameaças às vidas e territórios tradicionais destes povos.
“Ano passado a SEMA [Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Naturais do Maranhão] deu a licença para os fazendeiros, mas a gente entrou com uma ação no Ministério Público, foi suspensa a licença, não conseguiram desmatar o território de Cocalinho, mas desmataram o território de Guerreiro.”
O depoimento de Raimunda Nonata, liderança e agricultora da Comunidade Quilombola Cocalinho, situada no leste do Maranhão, nos ajuda a compreender a fragilidade atual do processo de licenciamento ambiental nos estados brasileiros, onde costumeiramente órgãos fiscalizadores atuam em prol de interesses dos grandes produtores de commodities e desconsideram milhares de vidas em territórios que são secularmente ocupados e protegidos por povos tradicionais.
Nonata conta que o desmatamento na Comunidade Guerreiro, localizada ao lado da Comunidade Cocalinho, trouxe severos impactos ao seu território. “Os lavradores perderam as suas roças na primeira chuva após o desmatamento, que trouxe a água de veneno [agrotóxico] e de óleo, os plantios de arroz, mandioca e milho foram todos consumidos”.
Quem vive com os pés no chão dos territórios não hesita em afirmar que a destruição da vegetação e da sociobiodiversidade tem relação concreta com as mudanças climáticas. “Moradores do Quilombo perderam suas lavouras por conta da mudança climática. Não choveu o suficiente para segurar as lavouras esse ano, nossos alimentos não foram o suficiente”, conta Nonata.
Essa degradação tem impacto direto sobre as bacias hidrográficas do Cerrado, essenciais para o abastecimento de água em diversas regiões do Brasil. Segundo mapeamento da iniciativa MapBiomas Água, nas últimas quatro décadas, 91% das bacias hidrográficas da eco-região perderam a superfície de água natural, afetando a disponibilidade hídrica e agravando a escassez em mais de 300 municípios do país.
Esse cenário de devastação compromete a subsistência de comunidades tradicionais e povos indígenas, pois acarreta a redução de recursos naturais, como água, terra fértil para plantio e a vegetação nativa, e a intensificação de conflitos territoriais, conforme explica Raimundo Siri, pescador artesanal e membro do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil (MPP).
“Fazemos defesa de nossos territórios todos os dias. Em defesa de um território limpo, desimpedido, para que a gente continue produzindo uma alimentação saudável para este país, mas são muitos absurdos que acontecem em nossos territórios tradicionais pesqueiros. Além do óleo derramado nas praias do nordeste, além da contaminação nos mangues, além das Off-Shores, agora temos também esse PL da Devastação”, enfatiza Raimundo.
É preciso destacar que a aprovação do “PL da Devastação” representa uma ameaça ainda maior à preservação da sociobiodiversidade e da vida dos povos indígenas e comunidades tradicionais do Cerrado e de todo o país, podendo resultar em um aumento do desmatamento, poluição e violações dos direitos humanos e ambientais, especialmente em áreas já vulneráveis e em franco processo de destruição.
Além disso, o PL 2.159/2021 pode afetar a integridade territorial de comunidades tradicionais e povos indígenas, ao permitir que obras de infraestrutura, atividades minerárias e empreendimentos do agronegócio avancem sem uma análise efetiva de seus impactos sociais e culturais.
“O pior de tudo é essa morosidade dos órgãos em fazer essa demarcação, essa questão fundiária e a garantia dos territórios dessas comunidades. Do jeito que as coisas estão, além de impactadas, as nossas vidas estão em jogo. Nós colocamos o nosso corpo para defender o território”, partilha o pescador.
No Cerrado, onde já se verifica o maior índice de desmatamento legalizado, pressão sobre territórios coletivos e a falta da execução de políticas de regularização fundiária por conta da negligência do estado, este tipo de flexibilização tende a acirrar conflitos e agravar ainda mais estes processos de destruição.