“Precisamos contar a nossa história pelo olhar da diversidade”, afirma o roteirista, dramaturgo e diretor Elísio Lopes Jr.
Se tem algo que Elísio sempre defende, é a caneta na mão das pessoas certas, defendendo a pluralidade de narrativas dentro das histórias que a História não conta.
Alguns livros já nascem clássicos. É o caso de Torto Arado, de Itamar Vieira Junior. E por ser um clássico, não tardaria a ganhar adaptação em outros formatos também, como no teatro. Por trás do estrondoso sucesso da adaptação do livro para os palcos está o nome de uma pessoa extremamente criativa e competente: o roteirista, dramaturgo e diretor Elísio Lopes Jr.
O baiano é um profissional excepcional da escrita e da direção. Ao mesmo tempo em que traz para os palcos “Torto Arado – o musical”, sua adaptação pungente do best-seller de Itamar Vieira Junior, assina a direção e o roteiro do espetáculo dos 50 anos do Ilê Ayiê – primeiro bloco afro do Brasil – a ser realizada em 1º de novembro, em Salvador.
Se tem algo que Elísio sempre defende, é a caneta na mão das pessoas certas, defendendo a pluralidade de narrativas dentro das histórias que a História não conta. “[…] Precisamos contar a nossa história pelo olhar da diversidade. Se forem sempre os mesmos autores e diretores, se não tivermos o poder da caneta para definir como as histórias devem ser narradas, não adianta mudar a cor dos protagonistas, serão as mesmas histórias”, afirma.
E é com ele que nós conversamos hoje, nos aprofundando em temas como a pauta racial, o poder das narrativas e qual o legado ele quer deixar para as futuras gerações.
Com vocês, Elísio Lopes Jr:
1 – Como foi adaptar e levar para os palcos grandes espetáculos como “Torto Arado – O Musical” e o tão aguardado 50 anos do Ilê Ayiê?
R: Eu tive a sorte de crescer e me formar como artista em Salvador, convivendo com os universos culturais que a Bahia cria, e mantém, a partir da sua história. Eu me considero muito sortudo, transitei em diversos universos, convivi com os meus mais velhos, aprendi que somos múltiplos e que não existe a “história única”, as pessoas e os lugares são múltiplos. Precisamos nos curar da versão do colonizador. De esperar que alguém diga que somos bons ou belos. O que existe são pessoas, que para mim se transformam em personagens e cenas. Esse é meu ofício como dramaturgo, roteirista e diretor: contar histórias.
Construir o musical Torto Arado, nascido do livro de Itamar Vieira Jr, que é uma narrativa profunda, que revela a Bahia da Chapada Velha, que eu chamo de Bahia da Água Doce, foi um desafio de memória. Conhecer a força feminina que sustenta as famílias pretas da Bahia foi fundamental. Nesse espetáculo tem muito da minha avó, das minhas tias, e toda essa memória ancestral se expressa nessa adaptação para o palco. O espetáculo é uma saga feminina, de um povo que passa a vida inteira em busca de um chão, lutando pelo desejo de terra, de ter uma morada e dignidade. É isso que move esses personagens, sem que eles renunciem à fé, expressa no Jarê, manifestação religiosa que mistura referências católicas, espirituais e das religiões de matriz afro-indígenas.
Eu escolhi ter três protagonistas no palco, a avó Donana, que rejeita sua espiritualidade, e suas netas, Bibiana e Belonísia, que herdam essa ancestralidade e vão descobrir o caminho de volta às suas raízes.
Já com o Bloco Afro Ilê Ayê, eu retorno à minha infância, no Curuzu. O Ilê foi o lugar onde eu descobri a minha beleza, o sentido de aquilombar e como isso traz força. Quando o Ilê completou 40 anos, eu já era artista formado, e fui convidado para dirigir a Noite da Beleza Negra pela primeira vez. Esse é o evento mais importante do Bloco, porque elege a Deusa do Ébano, a mulher que vai à frente da instituição durante o carnaval e representa sua beleza e força. Durante dez anos eu trabalhei com um coletivo de artistas composto por Jarbas Bitencourt, Zebrinha e muitos outros para transformar esse concurso numa noite de celebração às artes negras do Brasil. Em 2024 eu dirigi esse evento pela última vez, mas por toda essa parceria, recebi o convite para dirigir e roteirizar o espetáculo de 50 anos do Ilê. Pra mim é um ciclo que se fecha, dez anos de criação artística, devolvendo ao Ilê Ayê tudo que aprendi com ele.
O espetáculo do dia 01 de novembro na Concha Acústica do TCA será para cinco mil pessoas, e vai unir em cena os tambores e cantores do Ilê com a Orquestra Afro-sinfônica, projeto do Maestro Bira Marques, além de convidados especiais. O meu objetivo é mostrar a beleza melódica das canções produzidas pelo Ilê. São canções que contam fragmentos dessa história e que ganharão arranjos orquestrais numa celebração grandiosa, fundamentada na percussão, mas que mostra todo seu potencial musical e harmônico, como o Ilê merece por toda sua história.
2 – Você acredita que a pauta racial avançou no Brasil?
R: Esse não é um raciocínio linear. Posso dizer que avançamos em muitos pontos, a consciência de que o Brasil é um país preto, essa não há dúvida. O fato de que nós somos consumidores, que nós temos influência econômica e social também já é um fato mais que comprovado. Mas, infelizmente, isso ainda não se reflete em poder de comando nas mais diversas áreas, nem mesmo nas artes que é onde eu atuo diretamente. Não basta termos atores negros nas telas, precisamos de diretores negros e autores negros chefiando as produções, definindo as narrativas. As estruturas de poder ainda são, em sua maioria, brancas. O processo criativo, assim como o processo industrial é hierarquizado e a diversidade precisa ser expressa nas suas diversas instâncias. Estou falando de abrir mão das direções, das gerências, das presidências, para que homens e mulheres negros, indígenas, brasileiros, possam contar suas próprias histórias. Isso é algo que ainda temos a conquistar.
3 – Qual a importância de termos pessoas pretas no controle da narrativa?
R: Essa é a única forma de contar a nossa história pelo olhar da diversidade. Se forem sempre os mesmos autores e diretores, se não tivermos o poder da caneta para definir como as histórias devem ser narradas, não adianta mudar a cor dos protagonistas, serão as mesmas histórias. Existia uma argumentação do mercado que dizia que não tínhamos atores negros, eles estão aí brilhando há décadas. Há poucos anos começamos a ver o trabalho de autores e diretores pretos, apesar de estarmos produzindo há décadas. É preciso enxergar e possibilitar espaços de comando para que autores e diretores pretos possam comandar os processos. Eles estão atuando, estão cheios de histórias para contar, o único obstáculo para muitos de nós ainda é a oportunidade de definir a direção, de escolher as palavras e de eliminar os estereótipos que assistimos há décadas.
4 – Quais foram os maiores desafios que você enfrentou ao trazer histórias tão ricas e complexas para o teatro?
R: Quem decide o conteúdo que vai ocupar as telas? Quem escolhe os projetos para serem patrocinados? Esse é o lugar onde o raciocínio sobre diversidade precisa alcançar. Quando essas decisões são tomadas, a diversidade cultural das regiões do Brasil é levada em conta? Mulheres, negros, indígenas, pessoas com necessidades especiais têm voz nessas escolhas? Nós estreamos Torto Arado, e antes da estreia todos os ingressos da temporada já estavam esgotados. O que podemos entender disso? O baiano quer conhecer a sua história, do mesmo jeito posso ampliar e afirmar, o brasileiro quer saber mais sobre ele, quer se ver nos palcos e nas telas. Mas o grande desafio é construir uma representação verdadeira, fluída e diversa nas instâncias de poder para que essas vozes sejam ouvidas.
Eu sou um roteirista, dramaturgo e diretor que atuo em TV, cinema e teatro e em qualquer lugar que eu esteja atuando, o meu compromisso é que depois de mim, venham outros como eu. Se isso acontecer será o testemunho real de que eu fiz um bom trabalho. Se eu não for único, a minha meta estará atingida e eu serei um artista realizado.
5 – Como você vê o papel da arte e da cultura na promoção de mudanças sociais e na conscientização sobre questões raciais?
R: A arte aponta caminhos, aponta o dedo para feridas, atenua dores, possibilita o sonho. Para grande parte do Brasil, a TV é a única opção de informação e entretenimento. É preciso ter responsabilidade e compromisso com isso. Uma novela não é apenas uma ficção que vai entrar na casa das pessoas todos os dias, é um espelho, é um motivador de comportamentos, é um interlocutor da vida das pessoas. É preciso oferecer espelho e esperança. Por muito tempo foram poucas vozes ecoando e dizendo o que era bonito e feio. Hoje é preciso um coro de vozes, muitos outros pontos de vistas e um diálogo real. A verdade não é uma só e ninguém é dono dela.
6 – Qual legado você quer deixar?
R: Eu sou pai de três meninas pretas: Bela, Nina e Malu. Tudo o que eu faço é desejando que elas tenham orgulho do que eu escrevo e dirijo. Que minha esposa, minhas tias, minha mãe se vejam nas minhas histórias, se emocionem e digam que valeu à pena. Mas o legado real que eu quero deixar é uma casa própria para cada uma das minhas filhas. Eu quero que elas tenham herança, tenham a possibilidade de começar de um lugar melhor do que eu. Que elas possam ter onde morar e com isso possam escolher quem serão e o que farão de suas vidas. O legado real de um homem preto é esse, o bem-estar da sua família.