Por uma outra racionalidade na segurança pública
A reprodução dessa política que conjuga insanidade e brutalidade vem afetando também a saúde mental de muitos policiais
Em pleno 7 de setembro, no dia da pátria, Heloísa dos Santos Silva, uma brasileirinha de 3 anos, passeava de carro com seus familiares pelo arco metropolitano, em Seropédica, quando foi atingida na cabeça por um dos tiros disparados por policiais rodoviários federais em patrulhamento pela rodovia. A sua morte, nove dias depois, causou comoção nacional. Segundo dados do instituto Fogo Cruzado, tiroteios têm ceifado uma criança ou adolescente a cada quatro dias, em média, nos últimos sete anos, no Rio de Janeiro. Na maioria dos casos, os jovens são baleados em ações de segurança pública. Só em agosto, segundo o instituto, em 155 confrontos, oito meninas e meninos foram baleados, dos quais seis não sobreviveram. O governador Castro tem atribuído tantas mortes à falta de treinamento e anunciou novos cursos para os agentes. Essa iniciativa é, no entanto, insuficiente. Segurança pública não é um problema policial, tão somente, mas político.
Desde 2016, também de acordo com o Fogo Cruzado, das 601 crianças e adolescentes baleadas, 286 foram atingidas em intervenções policiais e 112 morreram, a maioria dentro de casa, na escola ou no trajeto entre uma e outra.
Não parece apropriado tratar a violência oriunda do braço armado do Estado como falha ocasional da governança política.
A truculência na operação da “ordem pública” no Brasil tem sido um modo de governar aplicado desde os tempos do Brasil imperial, na repressão a um público bastante específico: pessoas negras e pobres. Um modo de reproduzir o regime de desigualdade que estrutura o país. Cursos de qualificação para treinar policiais em protocolos de abordagem mais seguros para a população são bem-vindos, mas não vão pôr fim à racionalidade racista e letal de um Estado armado, prioritariamente, contra o povo favelado ou periférico.
Há de se rever, portanto, a própria concepção militarizada e maniqueísta que estrutura a lógica de emprego das forças de segurança, adestradas tradicionalmente para combater, dominar, encarcerar e eliminar o “inimigo interno”. Nesse sentido, naturaliza-se a criminalização racializada de toda uma classe, assim tratada como perigosa e tornada descartável. No contexto dessa falaciosa, incessante e ineficaz “guerra” contra o crime, o governador Castro por mais de uma vez reproduziu o velho discurso eleitoreiro da defesa da ação policial truculenta nas favelas como suposta solução para a insegurança pública. Antes dele, o governador Sérgio Cabral, nos anos 2000, já repetia essa fórmula, assim como Marcello Alencar, nos anos 90, e Moreira Franco, no final dos anos 80. Ao longo das últimas décadas, o que ocorreu, entretanto, concomitantemente ao encarceramento em massa e ao genocídio negro, foi o agravamento dos dados sobre violência e crescimento do poderio armado. .
O desafio do basta a esse banho de sangue infanto-juvenil vai exigir uma máxima vontade e um esforço conjunto do poder público e da sociedade civil na reformulação profunda da natureza das instituições policiais, que deveriam atuar justamente para a garantia e o respeito aos direitos e para proteger a vida e a integridade física das pessoas.
Chega da propaganda ideológica enganosa que insufla comportamentos abusivos justificados por um imaginário raso percebido em expressões como “nós contra eles”, “o bem contra o mal”, “heróis e bandidos”, cuja síntese mais conhecida é a bárbara expressão: “bandido bom é bandido morto”. É como se a redução dos crimes se resolvesse com tiros de fuzil e não com planejamento racional, fundado em evidências, e materializado em políticas públicas de curto, médio e longo prazos. E o resultado é todo esse horror de uma menina morta aos três anos, pelas mãos que deveriam protegê-la. No estado do Rio de Janeiro, a política pública de segurança que deveria zelar pela vida humana foi responsável por 651 mortes apenas entre janeiro e julho deste ano (2023).
A reprodução dessa política que conjuga insanidade e brutalidade vem afetando também a saúde mental de muitos policiais. Não por acaso, os profissionais de segurança pública têm apresentado elevados índices de transtornos psíquicos e suicídio. A guerra aos pobres tem seus custos. É, sobretudo, a humanidade dos envolvidos nessa loucura o que mais é arruinado. Apostar em uma política belicista adoece a todos, perverte o sentido de se viver em sociedade, minando pelas bases o Estado Democrático de Direito e a própria substância da democracia. Nesse sentido, uma Lei de nossa autoria pretendeu criar um programa estadual voltado à prevenção do adoecimento psíquico dos policiais fluminenses.
Em setembro, apresentamos novo projeto, dessa vez visando a criação de um banco de dados para o monitoramento mais qualificado da saúde mental dos profissionais de polícia.
Temos produzido e apoiado na Alerj iniciativas que busquem incidir na redução de danos. A situação demanda, todavia, reforma estrutural em articulação com outras áreas do poder público e com todos os poderes da República, para o enfrentamento ao racismo estrutural, às desigualdades e para a promoção da justiça social, premissas básicas para uma sociedade de fato mais segura, porque mais justa e solidária. Há dois anos aprovamos a Lei Ágatha, para priorização e urgência nas investigações de crimes cometidos contra crianças e adolescentes. O que temos, infelizmente, segundo pesquisa feita pela Defensoria Pública Estadual, é o acúmulo de 9.428 inquéritos sem solução, alguns engavetados há mais de 20 anos, o equivalente a mais da metade das 15.614 investigações iniciadas a partir de 1999, referentes a homicídios de crianças e adolescentes no Rio de Janeiro. O Estado que sequestra o futuro de crianças como Heloísa e tantas outras escreve com o sangue jovem e negro terríveis memórias, apontando para um futuro incerto e trevoso.
Contudo, ainda há tempo, e o tempo de mudar essa escritura da morte e da estupidez é o agora.