Por Camila Barraca – Historiadora e pesquisadora da comida ritual na umbanda / Ativista Alimentar

Dos tabuleiros às estrelas Michelin há um abismo. Estrelas essas que não contam a história do céu, mas que estrelizam um protagonismo branco frente às grandes cozinhas e destinam os diplomas conquistados pela negritude à meia luz de pias e boquetas. Essa distância compõe o mapa desigual da gastronomia brasileira, onde prestígio e reconhecimento nunca foram distribuídos de forma imparcial. A elite culinária se consolidou a partir de escolhas que ignoraram saberes ancestrais, enquanto técnicas sustentadas por mulheres negras seguiram confinadas à esfera da obrigação, e não da autoria. O brilho do salão, muitas vezes, só existe porque alguém permaneceu na sombra.

A história de mulheres negras nas cozinhas é contada pelas amas de leite, doceiras de compota, baianas de acarajé, merendeiras e marmiteiras. O que elas têm em comum? A marca da desigualdade no contexto histórico social que as destitui de sua intelectualidade e condiciona-as a um sistema de servidão. São mulheres que alimentaram o país com memória, rigor e técnica, mas cujos nomes foram deixados de fora das páginas oficiais. A cozinha brasileira se constituiu sobre seus ombros, mas a narrativa nacional insistiu em reduzir seus saberes a uma suposta vocação natural, esvaziando a dimensão intelectual de suas práticas.

Discutir a luta antirracista no sistema alimentar é sacodir as toalhas que encobrem o pacto narcísico da branquitude que sustenta o racismo estrutural brasileiro. A comida, que tantas vezes é tratada como afeto, tradição ou estética, revela fraturas profundas quando analisada com atenção. Cada prato carrega hierarquias silenciosas, desigualdades acumuladas e escolhas políticas que estruturam quem come, como come e o que chega à mesa. Em um país onde a fome segue sendo rotina para milhões, falar de cozinha antirracista não é retórica. É necessidade urgente e recuo nenhum é possível quando o alimento se torna evidência de injustiças antigas.

A frase de Lélia Gonzalez — mulher negra, naturalmente, é cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus ou prostituta — expõe a naturalização de papéis sociais que atravessam gerações. No período escravagista, o termo “mucama” organizou a vida de inúmeras mulheres negras, designadas ao serviço contínuo da casa grande, ao cuidado da família branca, à produção de alimentos e às funções que sustentavam o cotidiano dos engenhos. A abolição inacabada apenas transferiu esse lugar para os centros urbanos, onde senzalas se converteram em quartos de empregada e o trabalho doméstico se institucionalizou como herança de desigualdades ainda vivas.

 GONZALEZ,  Lélia.  Racismo  e  sexismo  na  cultura  brasileira.  Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, São Paulo, 1984. p. 223- 244.

Esse imaginário social consolidou a ideia de que a mulher negra nasceu para servir e cuidar, como se fosse destino e não imposição. Esse raciocínio restringe horizontes e naturaliza a violência, mantendo corpos negros em posições subalternizadas. A herança escravagista impregnada no sistema alimentar encontra no racismo estrutural sua fonte de sobrevivência. Dos campos de monocultura surge o racismo fundiário. De um desequilíbrio agroecológico nasce o racismo ambiental. Da falta de acesso a alimentos de qualidade e em quantidade adequada, o racismo alimentar. O alimento, nesse cenário, é marcador de desigualdade e espelho das tensões que o país insiste em não resolver.

Das mesas à chefia de grandes restaurantes, questões raciais atravessam os pratos e encontram corpos negros. A hierarquia das cozinhas profissionais repete dinâmicas históricas: mulheres negras acumulam técnica e experiência, mas raramente ocupam cargos de criação ou direção. O trabalho pesado da cozinha é associado a elas, enquanto o prestígio e a assinatura são reservados a figuras que se repetem no estereótipo. O resultado é a perpetuação de um sistema que impede o reconhecimento pleno de quem sustenta, de fato, a base do setor gastronômico.

A cozinha antirracista surge como possibilidade concreta de tensionar esses processos e abrir caminhos de interpretação e ação. Ela articula pilares fundamentais — raça, classe e gênero — para analisar a formação da cozinha brasileira e revelar camadas que foram apagadas ou distorcidas. Ela analisa como síntese de relações de poder, como campo de disputa simbólica e como espaço de memória coletiva. É nesse cruzamento que se torna possível compreender por que certos sabores ganham prestígio enquanto outros permanecem invisibilizados

A coluna Cozinha Antirracista nasceu no dia 20 de novembro, em parceria com a Xepa Ativismo, como desdobramento de um projeto que venho desenhando desde 2023 e que finalmente ganha espaço público para conversa contínua. A proposta é ampliar o debate sobre o sistema alimentar, iluminar autorias negligenciadas, revisitar narrativas históricas e aproximar o campo da gastronomia das urgências sociais que atravessam o país. E diante dessa trajetória, fica a pergunta que orienta este início: se a comida revela aquilo que tentamos esconder, estamos prontos para encarar a realidade?