Por que, Berlim?
Para a cidade marrenta e tinhosa como Berlim é preciso dizer “sim”, todos os dias. Caso contrário, é melhor tentar Paris.
“Anjos sobre Berlim
O mundo desde o fim
E nem tanto era um sim
E foi e era e é e será sim”
Ao contrário de Paris, que faz de um tudo para te seduzir com o cenário urbano de gelar a retina, e Roma que, te aconselha a estar cercado de sensações, imagens, cheiros e Fatas Morganas, Berlim não se interessa por você. Pois é.
Berlim, cidade marcada por revoluções, motins, guerras e que foi destruída em 80% pela II Guerra, resultante dos 12 anos do nacional-socialismo Hitler (Atenção Spoiler que não era de esquerda!). Algumas feridas no cenário urbano se encontram cicatrizadas, outras ainda no processo e outras ainda muito abertas pelas esquinas de trânsito e também nas mentes de um povo muito sofrido.
Certa vez, esperando abrir o sinal (ser pego atravessando o sinal aqui custa, no mínimo 130 euros), notei uma pessoa colada numa das ruínas do muro, ao lado do terreno que foi o centro logístico do nacional-socialismo e hoje abriga o Centro de Documentação, “Topografia do Terror” um dos lugares mais visitados da capital. Começamos a conversar e antes do sinal abrir, eu perguntei o que ele achava de Berlim: “Estou tentando compreender” foi sua resposta e a mais profunda que já ouvi.
A iniciativa da Mídia NINJA em tornar mais abrangente sua editoria internacional, veio calhar com a ideia de reportar, com frequência, sobre diversas pautas de Berlim. Afinal por que, Berlim? Porque como capital da República ela é o centro político, onde se concentra o poder não “somente” por (ainda) ter Merkel como chanceler (e não como Primeira Ministra como globais insistem em chamá-la), mas porque a Alemanha ainda é a maior potência econômica do bloco da UE.
O número de facetas da antiga ilha e hoje, metrópole é impossível catalogar.
Aqui chegam atrizes/atores desconhecidos e saem como celebridades ou, como no caso de Fernanda Montenegro, recebem a consagração internacional que já lhe era devida há tempos. A atriz chilena Paulina Garcia, eternizada em “Gloria”, filme dirigido por Sebastian Leilo, decerto já tinha o reconhecimento como atriz de teatro, cinema e TV na América do Sul, mas Berlim, ainda mais a Berlinale, mudou tudo. Paulina encantou Berlim. Para Fernanda, a cidade se rendeu aos seus pés, digo, aos seus “olhos esbugalhados” como disse na época um jornalista do jornal local, “Tagesspiegel”.
Berlim pode contagiar tanto que protagoniza histórias como a do diretor chileno, Leilo. Depois da fulminante vitoria do filme na Berlinale, ele ficou por aqui e abriu um restaurante com o mesmo nome de sua atriz predileta no bairro de então subcultura convulsiva de Kreuzberg (e hoje solo dos Hipsters). Lá é um ponto de encontro da cena latino-americana da capital. Há também pessoas que odeiam Berlim e preferem a bucólica e nostálgica Viena no pacote com Schnitzel e Torta de chocolate com cereja.
Será bem difícil ir “se acostumando” a gostar de Berlim. Ou você se identifica com ela de cara ou irá detestá-la.
A visibilidade e relevância político-cultural de Berlim foi ratificada recentemente quando foi exibido o filme que marca a estreia de Wagner Moura na direção: “Marighella” teve première (sem concorrer aos Ursos), mas foi O SINAL que um país como o Brasil, de dimensões continentais, estava sucumbindo numa isolação política sem precedentes desde que o mundo globalizado. E foi naquela noite, ao sair da sala de cinema com Victor, que mora em Londres e vestia uma camisa vermelha que remetia à vigília na porta da PF em Curitiba. Enquanto ele tagarelava com alguém, vislumbrei Jean Wyllys, rodeado de algumas pessoas. Foi a sua primeira aparição em público do ex-deputado do PSOL, depois de deixar o Brasil. Vitor conhece Jean, que apresentou a Fátima e a entrevista exclusiva se tornava factível e foi veiculada na sequência, na versão online da Carta Capital. Berlim é isso. Tudo é possível. Encontros inesperados e surpreendentes que fazem parecer que Berlim é logo ali. Mas só mesmo quem esteve sentado no avião vindo pra cá, sabe como esse lugar é longe de Terra Brasilis. Até segunda ordem, Berlim não terá finalizado a obra do Aeroporto Central. Os voos pingados pela Europa até se conseguir chegar ao Brasil, ainda tem grande conjuntura.
Delicatessen Musical 2019
Na programação do verão berlinense, que pelo calendário inicia hoje, pode-se ratificar que Berlim é mesmo logo ali e pode-se também constatar que esse verão ficará na história. 3 Medalhões da MPB passam por aqui. Começando pelo baiano Caetano, dia 25/06. Figura raríssima na capital e, se não me engano, a última (e talvez a única) vez que passou por aqui foi com Gil promovendo o disco “Tropicália” em 1994, show que aconteceu um dia depois do Brasil ter vencido a Copa do Mundo nos EUA. E como o universo às vezes te dá uma rasteira, eu não fui ao show. Estava de empresária do Olodum em turnê pela Europa. Dia 05/07 tem o “Bituca” das Gerais com “Clube da Esquina” que já assisti nos primeiros dias de 2014 no Olimpo da boemia carioca, na Fundição Progresso. Porém, a expectativa de vê-lo tocar no terraço da Casa das Culturas do Mundo em Berlim transborda qualquer horizonte de um cenário anteriormente pensado.
Para fechar com chave de ouro, o autor de “Toda Menina Baiana” volta no segundo ano consecutivo, depois de deixar os berlinenses na secura entre 2011 e 2018, Gil exercita a cartilha de Milton que ensina que “Todo artista deve ir aonde o povo está”. Considerando o estado de saúde de Gil entre 2015 e 2017, essa superação mostra como ele é Gigante!
Por ironia ímpar, os Medalhões chegam aqui num momento em que a Classe Artística se tornou a inimigo número 1 do cidadão mediano e lacaio de Messias.
Para quem precisa de cultura como instrumento de inclusão, identidade e para perceber seu lugar no mundo, Berlim é lugar.
Além disso, aqui tudo é político: a forma de consumir cultura, alimentos, a escolha da sexualidade ou a ânsia de vivê-la sem medo de ser feliz, a forma de lidar com a vendedora da padaria, enfim: a forma de ver o mundo.
Não há um dia de frio gélido, nem chuva fina com temperatura negativa que impeça berlinenses de irem para as ruas protestar contra um ataque homofóbico ou contra a proibição de cachorros sem coleira no lago ou contra a visita do governador do Rio, Witzel, convidado pela Câmara de Comércio para conversar com investidores ou com os tubarões imobiliários e o vertiginoso processo de gentrificação que torna quase impossível conseguir um apartamento em Berlim. A lista é longa. Há sempre algo para protestar, levantar a voz, se posicionar, testar limites, possibilidades.
A resposta a “Por que, Berlim?” já valeria se fosse “somente” pela bicicleta ser muito mais do que um meio de deslocamento de A até a B. Andar de bicicleta (não para somente dar um rolé pelo condomínio) é um forma de ver um mundo, um posicionamento político já que evita a emissão de gás carbônico, mas também um fator de emancipação, algo ligado com a liberdade que Berlim não oferece, mas possibilita você construir a sua.
Quem veio a Berlim e não levou uma surra de horas andando de bicicleta, perdeu o trem da visceralidade que essa experiência, possibilita.
Berlim é sinônimo de Freiheit (Liberdade), também pessoal e isso não é de hoje. Já durante os “Anos Dourados”, (1924-29) época em que Berlim era a terceira maior cidade do mundo e já era solo que acolhia refugiados políticos, artistas, aqueles que queriam se permitir “ser diferente” ou mesmo viver uma vida tranquila, como fizeram nos anos 1970 David Bowie e Iggy Pop,na época em Berlim gozava de Status de uma ilha cercada pela Cortina de Ferro.
Berlim é e sempre foi lugar para ser e estar como já dizia o Frederico II, Rei da Prússia: “Cada um da sua maneira”. Para a cidade marrenta e tinhosa como Berlim é preciso dizer “sim”, todos os dias. Caso contrário, é melhor tentar Paris.