Pensar para que o afeto de homens pretos seja visto para além da dor. E outras reflexões.
A experiência da maioria dos homens pretos, no mundo, é a da invisibilidade de nossos afetos e sentimentos, em detrimento de uma imaginário que sobrepõe nossas humanidades.
O cenário é o desembarque do aeroporto. Após um abraço demorado, ele caminha tomado por uma tristeza cinza feito a cor de seu moletom, que nesse momento acinzenta tudo, ao redor.
A cada passo, a câmera acompanha um homem gigante cabisbaixo, secando as lágrimas que o desmancham. Aquele salão vai ficando mais frio do que aparenta ser.
É uma das imagens mais dolorosas que eu já vi. E antes fosse uma dramática cena de filme, mas infelizmente, não é. A fortaleza desmoronando é LeBron James que chora melancolicamente ao saber do trágico acidente que interrompeu a vida de seu grande amigo, Kobe Bryant e a sua querida sobrinha, Gigi.
Foi para James que o eterno camisa 24 do Lakers, Kobe, ofereceu sua última mensagem no Twitter, ao escrever: “continue avançando o jogo. Muito respeito, meu irmão”. Quem acompanha o esporte sabe o quão genuína foi essa tweet-despedida da lenda que assumiu o Mamba Negra como apelido, em referência à serpente africana, perigosa, astuta e de bote certeiro, para o amigo King James. Em prova de amor, LeBron tatuou a Mamba, para eternizar o laço fraterno.
Não há quem não tenha esmorecido no último domingo ao ler ou assistir sobre esse acidente fatal.
Kobe Bryant, no alto dos seus 1,98m refletia a grandeza do seu amor pelo basquete e trabalhou muito para honrar o legado de seu pai, o ex-jogador do Philadelphia 76ers, ao mesmo tempo em que transferia, com muito afeto, suas habilidades para as filhas igualmente apaixonadas pelo esporte. Entre elas, Gigi, quem Kobe acompanhava para mais uma rodada do torneio que a garota estava disputando e que, naquele domingo, aconteceria na Mamba Academy. Aos 13 anos, Gigi “surreal” (como a academia a homenageou), que foi segundo seu pai, era melhor que ele no basquete, faleceu ao lado do seu grande mentor, amigo e principal referência.
Eu acompanhei várias das manifestações de jogadores, artistas e fãs de Kobe Bryant, lamentando sua passagem. Mas iniciei o texto falando de Lebron James porque foi uma das que mais marcou.
Tão tocante quanto o vídeo que descrevo aqui é seu texto publicado dias depois, no Instagram, que começa dizendo que ele não estava pronto para falar. É daqueles posts de “escrever e apagar” algumas vezes, que cada palavra que vem à cabeça some na visão turva de tantas lágrimas.
Coisa que só quem já escreveu a despedida sabe o quanto dói. E embora eu saiba que o mundo todo leu comovido, fiquei pensando que o luto é um dos poucos momentos que a maioria das pessoas podem ver os afetos de homens pretos, ainda que transbordados em dor. Não porque não expressamos. Não porque não sejamos, mas porque o racismo brutalizou tanto nossas imagens como nossas subjetividades. Assim, ao mesmo tempo que a sociedade invisibiliza, há em muitos de nós a prática de se esconder ao sentir.
Mas a dor… a dor fura bloqueios e vaza pelos olhos, principalmente na morte, na tristeza.
O mundo viu Leblon James triste. Também já o viu triunfante, nas quadras.
São coisas mais fáceis de se ver quando há centenas de câmeras apontadas para si, mas a experiência da maioria dos homens pretos, no mundo, é a da invisibilidade de afetos e sentimentos em detrimento de um imaginário que sobrepõe nossas humanidades. Fomos considerados insensíveis, ríspidos e pouco dados a sensibilidades. Há códigos culturais que, a todo instante, fazem questão de definir essas imagens.
Uma prova disso, por exemplo, foi a forma tendenciosa que a página de esportes do Jornal O Globo noticiou a morte de Kobe Bryant. A redação poderia lamentar ou usar as primeiras linhas de destaque para homenagear um dos atletas mais importantes do século, pai de meninas e membro ativo na luta por transformação de sua comunidade através do esporte, mas não. A matéria assumiu um lado perverso ao rememorar, na chamada, um dos períodos mais críticos de sua carreira, um escândalo envolvendo acusação de estupro. Uma mancha que, embora tenha sido solucionada com acordo entre as partes e com denúncia retirada, marcou a vida toda de Kobe. Há diversas matérias americanas sobre o caso que descrevem o processo e explicam por que as acusações foram retiradas. Sugiro um olhar atencioso de pesquisa sobre, bem como, sugiro o artigo da potente pensadora Juliana Borges, publicado aqui na NINJA, sobre Bryant.
A verdade é que a figura de homens pretos violentos foi criada no processo histórico de consolidação do racismo e se arrasta povoando o imaginário e ações sociais contra nós.
No contexto americano, um marco dessa imagem é a terrível narrativa do filme “O nascimento de uma nação” (1915), que se consolidou com uma verdadeira ode ao racismo, cristalizando a ideia do preto estuprador que instintivamente violenta mulheres brancas. Basta ler sobre para compreender como esses códigos atravessam as relações ainda hoje, e como isso incentiva uma política de extermínio e encarceramento de homens pretos, em todo mundo.
Em uma sociedade racista, basta que se denunciem homens pretos para que sejamos criminalizados. A enunciação de denúncia já é sentença, e a sentença é sempre de morte. Se não a física-letal, as simbólicas e subjetivas. Como as tentativas de matar a memória de Kobe Bryant, investida por uma série de jornais.
Tudo é parte de um grande sistema que nos violenta e insiste nos produzir para violências. Que nos impede de ser vistos como seres dignos de humanidades, endurecendo e embrutecendo nossas experiências de ser.
Eu escrevo para que pensemos sobre isso.
Eu escrevo porque tensionar é parte do processo de reconstrução das nossas dignidades, que mais do que nunca, precisam ser centro dos debates.
E escrevo porque ao sentir, também existo. E isso é urgente, para todos nós.