Paraíso do Tuiuti é a Campeã do Povo
É o povo pobre, negro e trabalhador daqui, afirmando que a rebeldia e a desobediência civil são capazes de inventar um novo Brasil driblando todos os poderes.
É festa em São Cristóvão! O Morro do Tuiuti tem uma história que se confunde com a própria história do Rio de Janeiro. Por mais de 200 anos, a comunidade foi testemunha de muitas das principais transformações físicas e sociais no Rio de Janeiro. Ainda no Rio imperial, a decadência aristocrática tomava forma de opressão violenta sob a forma da escravidão. Com a abolição formal da escravatura, em 1888, e a proclamação da República um ano depois, a desigualdade tomou outras formas. Antigos escravos e pobres migrantes se juntaram em cortiços que se tornaram recantos de pobreza e febre amarela. Durante a primeira década do século vinte, com as reformas urbanas de Pereira Passos, os cortiços foram destruídos e substituídos por boulevards, praças e prédios que hoje estruturam o centro do Rio. Os assentamentos informais no Morro do Tuiuti começaram nessa época e embora não haja registro de quem ocupou o morro primeiro, os relatos locais alegam que foram os trabalhadores que reconstruíram a cidade. Pais e mães de família, em sua maioria negros, construíram uma tradição de atividades carnavalescas, tendo dado origem às escolas de samba Unidos do Tuiuti e Paraíso das Baianas e ao bloco carnavalesco “Bloco dos Brotinhos”. As três agremiações deram origem à atual escola de samba Paraíso do Tuiuti.
O nome Tuiuti está também na História como palco da batalha mais sangrenta do continente sul-americano. Mais de 50 mil homens, em sua maioria negros e mestiços escravizados, participaram forçosamente dessa batalha durante a Guerra do Paraguai, com um saldo de perdas que chegaram a 2935 mortos e 996 feridos, a maioria das vítimas brasileiros.
Coube à essa comunidade a heróica façanha de se tornar a campeã do povo no carnaval de 2018. Corajosamente a escola de São Cristóvão colocou a escravidão na centralidade da problemática brasileira. Na raiz de toda desigualdade, violência e injustiça que caracterizam nossa sociedade, a escravidão ocupou a Sapucaí em toda sua extensão histórica para nos trazer aos dias atuais, à democracia golpeada e as malditas reformas neoliberais da quadrilha que assaltou o poder para retirar conquistas sociais dos trabalhadores brasileiros. O golpe de 2016 desfilou ante os olhos do mundo, com os manifestantes manipulados pela mídia hegemônica e trazendo um vampiro ladrão com a faixa presidencial tomada de assalto da legítima mandatária eleita pelo voto popular. Calando a transmissão da Globo, a escola de São Cristóvão consagrou seu enredo na história do carnaval em um dos mais memoráveis desfiles já vistos na Marquês de Sapucaí. Daqui a 50 anos, talvez ninguém se lembre quem venceu o carnaval de 2018, mas certamente nos livros e na memória do povo estará a saga da Paraíso do Tuiuti que um ano após o acidente com um carro alegórico desgovernado que deixou 1 morto e 19 feridos renasceu das cinzas para conquistar o vice-campeonato do jurado oficial e ganhar os corações e mentes daqueles que resistem ao desmonte e à imoralidade do golpe infame contra nossa jovem democracia.
É festa no Morro do Tuiuti porque a primeira coisa que o Brasil precisa reconhecer é que nossa luta mais importante é contra todos os resquícios de escravidão que permanecem arraigados em nossa sociedade. Foram sucessivas as tentativas de invisibilizar o desfile histórico da Tuiuti, todas elas inúteis. A potência de seu enredo tocou o coração dos brasileiros e conquistou de imediato o apoio popular nas redes, nas ruas e na própria passarela do samba.
Venceram as dificuldades econômicas de um carnaval sabotado pela administração do Bispo Crivella. Venceram a mídia que patrocinou o golpe. Venceram o açoite do tronco e a mão opressora do chicote no lombo para afirmar que não somos escravos de nenhum senhor e gritar feito pele do tambor pela liberdade do cativeiro social.
É o povo pobre, negro e trabalhador daqui, afirmando que a rebeldia e a desobediência civil são capazes de inventar um novo Brasil driblando todos os poderes. Não se pode perder a esperança num país em que o samba aproveita o carnaval para insistir em derrubar os portões da senzala e apontar caminhos para a luta contra a desigualdade, o racismo, a injustiça, o retrocesso e todo obscurantismo que assombram o país nesse começo de século. A Paraíso do Tuiuti fez história no carnaval de 2018 e seu exemplo vai inspirar a resistência mais que necessária em defesa de nossos corpos e nossas vidas. Com beleza, poesia e festa também se luta. Organizar nossa revolta é urgente, sobretudo nesse tempo em que é preciso coragem para defender a alegria!