Jean Wyllys: Para não dizer que eu não falei da desembargadora – e da cobertura da imprensa
Esqueçam por um segundo que eu sou deputado federal. Eu sou um cidadão, uma pessoa, um ser humano. E uma desembargadora defendeu o meu assassinato.
A desembargadora Marília Castro Neves, a mesma que usou sua rede social para divulgar mentiras criminosas contra nossa companheira Marielle Franco, assassinada a sangue frio na última quarta-feira, defendeu que eu fosse fuzilado num «paredão profilático».
Isso mesmo: uma desembargadora propôs publicamente a minha morte!
Meus advogados vão apresentar uma queixa-crime contra Castro Neves, por ter cometido incitação ao crime de homicídio, e o PSOL do Rio de Janeiro vai representar contra ela para que seja afastada do cargo, mas precisamos refletir sobre a gravidade moral e institucional desses fatos.
Primeiro, uma desembargadora, servidora pública do Judiciário, com um salário de dezenas de milhares de reais, publica em rede social mentiras sobre uma vereadora executada a tiros por sicários no centro da cidade. Com absoluta irresponsabilidade e de forma criminosa, ela diz que a vereadora era “envolvida com o Comando Vermelho” e que foi engajada com bandidos* de drogas, entre outras absurdas mentiras. Quando questionada pela imprensa, reconhece que “não sabia” quem era Marielle Franco e que publicou essas mentiras porque viu “no Facebook de uma amiga”.
Repito: essa senhora é desembargadora!
Depois, ficamos sabendo que, mais de dois anos atrás, ela havia sugerido publicamente que eu fosse assassinado. Os posts dela vieram à tona depois das mentiras que ela disse sobre Marielle: «Eu, particularmente, sou a favor de um paredão profilático para determinados entes… O Jean Willis (sic), por exemplo, embora não valha a bala que o mate e o pano que limpe a lambança, não escaparia do paredão…», escreveu Castro Neves na rede social em 29 de dezembro de 2015. Quando questionada por alguns jornalistas, ela disse que tinha sido “irônica”, como se essa desculpa bastasse para justificar a incitação ao assassinato de uma pessoa.
Esqueçam por um segundo que eu sou deputado federal. Eu sou um cidadão, uma pessoa, um ser humano. E uma desembargadora defendeu o meu assassinato. Assim, literalmente, entre risos. E nada acontece! Cadê o Ministério Público? Cadê os tribunais superiores? Ninguém vai fazer nada?
Um capítulo à parte merece a cobertura de parte da imprensa. Quando foram divulgadas as mentiras da desembargadora sobre Marielle, a maioria das manchetes dizia «Desembargadora acusa Marielle Franco de…». Acusa. Como se essa “acusação” tivesse algum tipo de seriedade ou credibilidade. Absolutamente todos os jornalistas que escreveram a respeito sabiam, porque é informação pública, que Marielle não foi casada com nenhum traficante – de fato, ela namorava uma mulher –, que a suposta foto dela com Marcinho VP, usada para difamá-la, não é dela e nem do Marcinho VP, mas de duas pessoas desconhecidas, tirada de um velho perfil da rede Fotolog. Todos os jornalistas sabiam que a Marielle não engravidou aos 16 – é fácil fazer a conta se compararmos a idade da filha à dela; e qual seria a acusação se realmente tivesse engravidado nessa idade? – e todos sabiam, também, que ela não tinha qualquer relação com o Comando Vermelho, e nem defendida “bandidos”. Mas, em vez de titular «Desembargadora publica mentiras sobre Marielle», as primeiras manchetes apenas reproduziam as mentiras de forma literal, transformando-se em veículo para sua viralização na Internet. Isso só começou a mudar quando o dano já tinha sido feito.
Eu sei perfeitamente como é isso, porque sou alvo de todo tipo de calúnias diariamente. Inventam projetos de lei que eu jamais apresentei, declarações que eu não fiz, propostas que eu não defendo, entrevistas que eu não dei, coisas que eu não disse, e até falsificam fotos, tuítes, vídeos com edição criminosa, para me acusar das coisas mais absurdas. E quase ninguém se preocupa com isso, e milhares de pessoas compartilham as mentiras. Como estão fazendo agora com Marielle, mesmo depois de morta. Essa gente não tem limites!
Da mesma forma, é espantosa a omissão de boa parte da imprensa com relação à incitação ao meu homicídio cometida por uma servidora com um alto cargo no Judiciário brasileiro. Será que o silêncio teria sido o mesmo se ela tivesse incitado a morte de um político heterossexual e de direita? Ou será que o fato de eu ser de esquerda e gay assumido faz com que a muita gente – inclusive juízes, inclusive jornalistas – não lhes pareça grave que uma desembargadora peça minha morte?
Ninguém vai fazer nada? É isso mesmo?
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* Post scriptum: Antes da atualização deste artigo, escrevi que a desembargadora Marília de Castro Neves teria “acusado” nossa amiga e companheira Marielle Franco de ter sido casada com um traficante. Na verdade essa alegação falsa partiu de outras pessoas. Por parte da desembargadora, aliás, foi dito algo muito mais grave: que Marielle estava “engajada com bandidos” e que teria sido “eleita pelo Comando Vermelho”.