Os ouvidos, os olhos e o coração abertos
O insucesso do futuro governo pode significar a volta da extrema direita
É preciso estar com Lula para derrotar a extrema direita e reconstruir o Brasil
Não foi nada fácil. Golpe de 2016, governo Temer, feminicídio político de Marielle Franco, reforma trabalhista, PEC do teto de gastos, eleição de Bolsonaro, elogios à tortura, pandemia, negação da vacina, mais de 690 mil mortos, orçamento secreto, promoção do armamento de civis, desemprego, racismo de Estado e fome. As eleições foram uma rara oportunidade de frear a escalada autoritária e o campo democrático, apesar das idas e vindas, soube aproveitá-la.
Lula venceu a disputa contra Bolsonaro e impôs uma importante derrota à extrema direita brasileira. Com mais de 60 milhões de votos, ele foi o único capaz de articular uma política vitoriosa. Animado pela vontade dos mais pobres, Lula provou ser, ainda, a maior liderança popular do país.
Por outro lado, Bolsonaro conseguiu 58 milhões de votos no segundo turno – apenas 3,28 pontos percentuais atrás do vencedor. Deixa uma herança maldita. Segundo o balanço publicado pela equipe de transição, “há um verdadeiro apagão fiscal, que compromete os serviços públicos essenciais aos mais pobres”. A herança maldita de Bolsonaro é ainda pior se considerarmos a situação política: a extrema direita está mais organizada do que nunca.
No Congresso Nacional, somente o PL, partido do atual presidente, elegeu 14 senadores e 99 deputados. Alcançou, assim, a maior bancada nas duas Casas legislativas. A extrema direita também consegue ocupar as ruas e pratica atos públicos violentos, como vimos no dia da diplomação de Lula (12/12) em Brasília. Um outro elemento a ser considerado talvez seja o mais perigoso, há setores radicais de direita que estão armados até os dentes.
No Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma), existem mais de 1,7 milhões de armas registradas. O policial e pesquisador da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) Roberto Uchôa, em declaração à coluna de Carlos Madeiro no UOL, traçou o perfil desses proprietários como homens, brancos e conservadores. Em outras palavras: a mira está apontada para as mulheres, os negros, LGBTQIAPN+ e os progressistas.
A conjuntura pode ser resumida numa frase: ganhamos a eleição, mas estamos longe de derrotar a extrema direita. Só a partir dessa afirmação, aparentemente simples, temos a real medida da nossa responsabilidade. Derrotar os extremistas de direita é tarefa que vai exigir toda nossa capacidade de diálogo, inteligência e paixão.
Sem Lula, não há soluções viáveis a curto prazo. O insucesso do futuro governo pode significar a volta da extrema direita, ainda mais forte, ao poder. Com um agravante: diante de uma oposição desmoralizada e sem liderança.
Sendo bem direta: Lula não vai realizar um programa exclusivamente de esquerda. Dito isso, teremos que disputar o seu governo por dentro e com independência de classe. Apoiaremos o governo, mas não vamos compactuar com eventuais medidas antipovo. Só seremos decisivos se não tirarmos um segundo que seja os nossos pés do barro, das lutas, das ruas.
Quando Lula resistir à pressão das elites pela nomeação de um ministro da Fazenda ligado ao mercado financeiro, vamos sustentar a posição. Quando quiser ceder ao Centrão, seremos a voz dissonante e indicaremos outros caminhos.
No romance Becos da Memória, Conceição Evaristo narra um conselho de Tio Tatão, um personagem veterano de guerra, para a sua sobrinha Maria-Nova: “Muitos vão se libertar, vão se realizar por meio de você. Os gemidos estão sempre presentes. É preciso ter os ouvidos, os olhos e o coração abertos.”
Faço das palavras de Conceição as minhas. Assim, em diálogo com a minha ancestralidade, reafirmo a defesa do presidente Lula contra a extrema direita e os neoliberais. Dessa maneira, farei parte da disputa para que o governo realize políticas públicas antirracistas, feministas e populares. A caminhada será longa e não me esquecerei do conselho de Tio Tatão.
Renata Souza é a mulher mais votada da história da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Em 2022, foi reeleita deputada estadual PSOL-RJ com o voto de 174.132 pessoas. Renata é cria da Maré, jornalista e doutora em Comunicação pela UFRJ.