Os indígenas bolsonaristas e as eleições de 2022
Por Leonardo Barros Soares Um vídeo com imagens de indígenas segurando uma faixa de apoio ao atual presidente durante o ritual Quarup, no Xingu, foi divulgado por Jair Bolsonaro, pelo seu filho Carlos Bolsonaro e por bolsonaristas como Carla Zambelli . Com o título de “indiociata” – referência às já famosas “motociatas”- o vídeo quer […]
Por Leonardo Barros Soares
Um vídeo com imagens de indígenas segurando uma faixa de apoio ao atual presidente durante o ritual Quarup, no Xingu, foi divulgado por Jair Bolsonaro, pelo seu filho Carlos Bolsonaro e por bolsonaristas como Carla Zambelli . Com o título de “indiociata” – referência às já famosas “motociatas”- o vídeo quer transmitir uma mensagem simples: os indígenas (sim, todos eles) “estão com Bolsonaro”. Outro vídeo mostra uma indígena – “a dona da festa”- indo retirar a faixa das mãos de seus parentes e pedindo respeito. A altercação parece ter findado aí, mas é fato que a situação revela algo importante a ser dito: sim, existem indígenas bolsonaristas e é sobre eles que gostaria de discutir brevemente.
Comecemos, portanto, com o óbvio que, como sói acontecer, precisa ser afirmado e nunca presumido como de conhecimento geral: a população indígena brasileira é um segmento demográfico diverso, que compreende mais de trezentos grupos culturalmente e linguisticamente distintos, espalhados por um território de dimensões continentais. Assumir que populações racializadas pensam, agem e se articulam politicamente de forma homogênea é, para ficarmos numa palavra, racismo. Uma pessoa branca não fala por todas, certo? Por que uma pessoa negra ou indígena falaria? A ilusão – que é simétrica entre direita e esquerda – de que “todo indígena é de esquerda” deve ser desfeita de imediato, a bem do melhor conhecimento do que está em jogo em processos eleitorais como o em curso.
Isso não quer dizer, em absoluto, que não existam representantes políticos dos povos indígenas. É claro que existem e são cada vez em maior número. Uma vez que indígenas interagem com as forças políticas locais, regionais e nacionais, é razoável supor que eles se filiem a visões de mundo distintas e, por vezes, até mesmo antagônicas. Joênia Wapichana, candidata à reeleição como deputada federal, é uma grande liderança da Rede Sustentabilidade. Mário Juruna foi eleito deputado federal pelo PDT, que também abriga, hoje, o escritor e militante Daniel Munduruku, candidato ao mesmo cargo. Sônia Guajajara, coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, é candidata à Câmara Federal por São Paulo pelo PSOL. Em que pese serem todos membros de partidos situados no amplo espectro político da esquerda, não é possível afirmar que eles articulem visões políticas unificadas, nem que façam a mesma leitura da conjuntura política do país.
Um dado que talvez surpreenda o leitor/ a leitora é de que, conforme o levantamento relativo às eleições municipais de 2020, feito pelo professor da Universidade Federal do ABC, Luís Roberto de Paula, em que pese o fato do PT ser o partido que lançou o maior número de candidaturas indígenas, são os partidos de direita que, quantitativamente, em seu conjunto, superam os de esquerda. Em outras palavras, para as eleições municipais – que é o nível federativo em que o maior número de representantes indígenas consegue se eleger – um contingente considerável de indígenas está filiado a partidos de direita e centro-direita. Assim, se tomarmos a filiação partidária como um indicativo da ideologia do postulante, o mito do “todo indígena é de esquerda” não encontra amparo nos dados disponíveis.
É sabido que algumas lideranças indígenas se beneficiaram durante os quatro anos do governo Bolsonaro, até mesmo galgando cargos de relevância em algumas autarquias, secretarias e ministérios. Outros endossam a política da “nova Funai” de focar em processos de facilitação de algumas atividades econômicas no interior das terras indígenas. O “choque” de alguns analistas diante dessa realidade deriva, provavelmente, do fato de o governo Bolsonaro – e o presidente em particular – ser o mais antiindígena de toda a história republicana do país, com repercussões trágicas em áreas tais como a demarcação de terras indígenas e no combate à pandemia. Parafraseando o psicanalista Wilhelm Reich, em seu estudo sobre as massas e o fascismo, creio que a pergunta que não quer calar é: como podem alguns indígenas desejarem sua própria repressão?
Sem querer enveredar por esse caminho, penso que o fenômeno dos indígenas bolsonaristas ainda deve ser investigado de forma mais aprofundada. Parece-me que uma parte da explicação está no processo denominado por Paulo Freire de “aderência ao opressor”: a tendência de oprimidos adquirirem a mentalidade dos seus exploradores, especialmente em contextos coloniais, na ausência de uma educação libertadora. Mais que isso, não sou capaz de afirmar. Não me sinto à vontade para dizer que alguns indígenas estão sendo “manipulados” ou “cooptados”, embora muitos estejam, de fato. Nesse particular, é preciso atentar para o papel que alguns grupos missionários evangélicos estão desempenhando junto às populações indígenas de recente contato. Ao fim e ao cabo, no entanto, não é possível escapar do truísmo que vale para todos: escolhas políticas têm consequências. Minorizar essa população, alegando que “não entendem” o jogo político é, mais uma vez, uma postulação racista, que perpetua o desejo de tutela para com esses grupos.
Resultados de estudos preliminares que estou conduzindo sobre fatores que concorrem para a conclusão de processos demarcatórios indicam que o que chamamos de “coesão grupal” das lideranças indígenas é elemento central para o sucesso dos procedimentos. Grupos com lideranças fragmentadas, que estão em constante desentendimento, tendem a ter mais dificuldade de verem seus territórios tradicionais demarcados. Assim, tenho argumentado que é possível que o legado bolsonarista – na eventualidade de Bolsonaro não ser reeleito – será particularmente perverso para as populações tradicionais porque o radicalismo que suscita terá o condão de aprofundar divergências políticas internas. A tessitura comunitária politicamente fraturada pela cizânia, por sua vez, tornará menos provável que aquele grupo possa trabalhar em conjunto para obter, do Estado brasileiro, o reconhecimento de seu direito constitucional ao usufruto exclusivo de seus territórios tradicionais.
Estamos há menos de trinta dias para as eleições presidenciais. Afirmamos, em outro texto, que se trata do pleito mais importante para o país e, em particular, para o meio ambiente, desde a constituição de 1988. É igualmente crucial para as populações originárias do país. Portanto, compreender a extensão da influência do bolsonarismo sobre os povos indígenas se impõe como um desafio de grande relevância para todos aqueles interessados em entender o Brasil do presente e do futuro.
Leonardo Soares Barros é professor do Departamento de Ciências Sociais da UFV e colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPA. Mestre e doutor em Ciência Política pela UFMG, com período sanduíche na Université de Montréal. Coordenador do Grupo de Pesquisa Política e Povos Indígenas nas Américas.
Esse artigo foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições 2022, uma iniciativa do Instituto da Democracia e Democratização da Comunicação. Sediado na UFMG, conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras. Para mais informações, ver: www.observatoriodaseleicoes.com.br.