Os desafios de Biden com o trumpismo na oposição
A derrota de Trump nas eleições não significa necessariamente o fim do trumpismo e esse é um dos grandes desafios do governo de Joe Biden.
Trump foi derrotado nas eleições. O que podemos esperar nos próximos anos? O que é o trumpismo? Como ele pode se manifestar sem Trump na Casa Branca? E, o que podemos aprender com o passado para nos preparar melhor para o futuro?
Em primeiro lugar, é importante enfatizar que o trumpismo não é propriedade de Donald Trump, nem depende de sua liderança ativa. O movimento é a articulação atual de uma corrente nacionalista bem estabelecida ao longo dos anos na política dos Estados Unidos, o America First. Em grande parte, esta corrente encontra um lar nas frustrações e na noção de merecimento de privilégios que há em uma parcela grande de homens brancos. O trumpismo tem cerca de 30% de apoiadores da população em geral. Este movimento não vai desaparecer tão cedo e, agora como oposição, continuará. O ponto que eu quero refletir é como poderá se revelar nos próximos anos. Muito disso depende de como o Partido Democrata e Biden irão governar, do quanto eles estão comprometidos com Wall Street, e da relação que vão estabelecer com o Partido Republicano e com a esquerda organizada.
Em muitos aspectos, após assumir a presidência, o esforço de Trump para remodelar o Partido Republicano foi bem-sucedido. Quando Barack Obama se tornou presidente em 2009, o Partido Republicano era dominado principalmente por neo-conservadores da era Bush (filho). A entrada de Obama fez com que uma tendência libertariana para as questões domésticas, e neoliberal para questões internacionais, com apoio dos evangélicos, se formasse dentro do Partido Republicano, conhecida como Tea Party. Esta ala insurgente se definia como mais à direita dos neo-conservadores da era Bush, principalmente no que tangia às negociações com o governo democrata. Acredito que podemos aprender muito com a ascensão e a transformação do Tea Party e a relação que Trump construiu com esta tendência para entender o cenário que possa surgir nos próximos anos.
Trump, Tea Party e o Partido Republicano
O Tea Party foi formado por volta de 2009 como oposição radical aos democratas que nessa época tinham a presidência e maioria no Congresso. A teoria era que, se eles conseguissem impedir com que grandes reformas propostas pelo governo de Obama se tornassem leis, o público em geral ficaria frustrado e eles estariam em melhor posição para retomar o Congresso. Em 2010, a estratégia funcionou e os republicanos ganharam maioria na Câmara e muitas cadeiras no Senado. Quando estavam no controle da Câmara, os republicanos, liderados por muitos membros do Tea Party recém-eleitos ou convertidos, continuaram com a estratégia obstrucionista alcançando muito sucesso. Em 2011, os republicanos conseguiram maioria na Câmara dos Deputados e quatro anos depois no Senado. Essa tática fez com que nada de substancial fosse aprovado nos últimos seis anos do governo de Obama. Frustrado com sua incapacidade de chegar a um acordo com os opositores, Obama recorreu ao uso de ordens executivas, várias das quais foram contestadas e/ou anuladas pelas cortes.
Quando Trump declarou sua intenção de concorrer à presidência em 2015, ele não era visto como o favorito para se quer vencer a indicação do Partido Republicano, imagina a presidência. Dos seus oponentes nas primárias, os que tinham mais chances de vencer representavam o Tea Party, notadamente o senador Ted Cruz (Texas) ou o senador Marco Rubio (Flórida). Todos caíram um a um. Tanto a mídia corporativa liberal quanto a conservadora ficaram chocadas com a popularidade de Trump entre os eleitores de direita. A chave para o sucesso do apresentador do The Apprentice estava em seu apelo aos homens brancos da classe trabalhadora.
Durante a campanha, Trump criticou as elites corporativas, mentiu dizendo que autofinanciava sua campanha, criticou os acordos de livre comércio com o México e com a China e prometeu criar empregos. Para muitos, parecia que ele não tinha dívidas ou relação com Wall Street e, apesar de ser um playboy bilionário, cuidaria da classe trabalhadora. Nem todos caíram no conto, muitas pessoas na época declararam que Trump não estava sendo verdadeiro e que diria qualquer coisa para vencer. Estas pessoas estavam corretas, pois agora temos quatro anos de dados empíricos mostrando que Trump abandonou amplamente sua mensagem populista por reformas amigáveis ao mercado.
No entanto, quando comparado a um político como Joe Biden, que por anos teve um apelido no Senado associado a uma empresa de cartão de crédito, que propôs privatizar a aposentadoria e foi um forte defensor dos acordos de livre comércio, não é que difícil ver por que tantos brancos da classe trabalhadora ainda apoiam Trump. Desse modo, apesar das mentiras de Trump serem conhecidas, a eleição nos mostrou que a popularidade dele não caiu tanto, mesmo tendo perdido para Joe Biden. Aliás, podemos até dizer que aumentou em certos grupos. O presidente ganhou mais apoio entre negros e latinos comparado a eleição de 2016. Além disso, nesta eleição os democratas perderam cadeiras na Câmara, ainda que se mantenham como maioria, e, ao que tudo indica, continuarão sendo minoria no Senado.
A existência e sobrevivência do trumpismo só foi possível por causa de grupos como o Tea Party que surgiu há dez anos e teve sucesso como um movimento que não se comprometeu em criar acordos ou compromissos com os democratas. Isso prepararou a terra para um candidato populista de direita, que acabou sendo o Trump – um forasteiro, um crítico incontrolável de tudo e todos que faria qualquer coisa para chegar ao poder e que não era um político. E quando chegou lá, muitos republicanos do Tea Party viram as vantagens de incorporar o nacionalismo de Trump/trumpismo às suas identidades pessoais. Um destes republicanos se tornou o vice-presidente, Mike Pence. Nos últimos quatro anos do governo de Trump, o Tea Party deixou de ser relevante, tornou-se coisa do passado. Muitos de seus membros se converteram em republicanos-trompistas convictos. Com a eleição de Biden, este grupo vai voltar para a oposição e este é um lugar muito perigoso. O trumpismo pode sobreviver, multiplicar-se e se fortalecer dentro do Partido Republicano.
O Tea Party, de certa forma, criou um manual de sucesso em obstruir a legislação para que a população se sinta frustrada com o partido que está na presidência. É difícil imaginar que os republicanos abram mão dessa tática e digam: “Vamos nos comprometer com a agenda de Biden!” – mesmo que ele seja neoliberal e pró-Wall Street. Para este grupo voltar ao poder, a agenda não é a prioridade, mas a insatisfação do povo. Trumpismo na oposição usando o mesmo manual do Tea Party é um pensamento assustador.
O Grande Acordo
Desde a vitória de Biden, os líderes do Partido Democrata sinalizaram que não há interesse em incorporar ala da esquerda ao gabinete do 46º presidente. Porém, há muito interesse em incluir republicanos e ex-republicanos da época Bush. O cenário político atual é propício para que isso se concretize, pois há a grande probabilidade dos republicanos manterem o controle do Senado, sem falar na amizade de longa data entre Biden e o atual líder do Senado, o republicano Mitch McConnell. Tendo em vista o histórico de Biden como um excelente conciliador entre republicanos e democratas, tendendo mais para os interesses republicanos, é muito provável que a única legislação a ser aprovada no Senado será um grande acordo entre os dois partidos.
O passado dos EUA está repleto de grandes acordos. No entanto, para entender os limites do que pode acontecer, vamos examinar um dos exemplos mais extremos de compromissos na história dos Estados Unidos, o Compromisso de 1877. Um grande acordo com o supremo, com tudo, feito após uma das eleições mais caóticas e indecisas do país em 1876 que resultou no estabelecimento de um estado de apartheid, na retirada de direitos recém conquistados da população negra e no aumento da autoridade paramilitar dos supremacistas brancos no sul.
Para entender melhor o contexto do Compromisso de 1877, vamos voltar para o período pós-Guerra de Secessão, entre os anos de 1865 e 77 que é conhecido como Reconstruction (Reconstrução). Durante essa época, as tropas federais ocuparam o sul para forçar os ex-proprietários de escravizados a aceitar que os negros tivessem os mesmos direitos civis que eles. Um dos mecanismos jurídicos federais foram as emendas à constituição, precisamente, a 13ª Emenda (1865) que aboliu a escravidão, a 14ª Emenda (1868) que garantia direitos iguais aos negros e a 15ª Emenda (1870) que garantia o direito ao voto dos homens negros. Até certo ponto, as ocupações e alterações da constituição resultou em algum tipo de progresso, apesar do racismo estrutural profundamente arraigado com base nas ideologias da supremacia branca. Nesse período, cerca de 2.000 negros ocuparam cargos públicos, incluindo os primeiros deputados federais e senadores.
Mas isso não foi o bastante para a queda da supremacia branca. Em oposição a ocupação das tropas federais, os supremacistas do sul criaram uma organização secreta paramilitar, a Ku Klux Klan (KKK), em que muitos dos membros eram autoridades locais, proprietários de negócios ou os próprios políticos. Durante o período de Reconstrução, vários políticos negros eleitos foram assassinados pelo KKK. Os governos locais praticamente fecharam os olhos para o que estava acontecendo. Entretanto, o governo federal não, pelo contrário, criou uma série de leis para criminalizar o grupo usando as forças federais como recurso para o cumprimento delas. Essa política funcionou parcialmente, pois a presença pública do KKK foi reduzida. Porém, o grupo foi para a sombra e manteve viva as tradições.
A partir de 1873, os Estados Unidos entraram em um período de depressão econômica. Na eleição de 1876, todo o país estava nervoso e havia o temor da possibilidade de uma segunda guerra civil. A eleição foi disputada entre o republicano Rutherford B. Hayes e o democrata Samuel J. Tilden, e foi um fiasco! O Partido Republicano, na época, tinha construído uma reputação de abolicionista e defensor da expansão dos direitos civis dos cidadãos negros, bem como de apoiador das políticas da Reconstrução. Porém, em 1876 os políticos estavam mais preocupados em permanecer no poder do que em promover mudanças reais. O que estava em jogo para se permanecer no poder era a continuidade das políticas da Reconstrução que foram bem controversas dentro da classe dominante do sul. Os democratas, a maioria dos quais com base no sul, queriam o fim delas e a capacidade de governar como quisessem. Nos termos de hoje, Make America Great Again, por meio da segregação racial e de uma economia política que colocou muito das estruturas da escravidão dentro de uma lógica capitalista.
Bom, tendo em vista todas estas tensões, o que aconteceu foi o seguinte: a eleição de 1876 foi a mais bagunçada comparada a de qualquer outro ano e, para resolver o caos, foi criada uma comissão especial para decidir o que iria acontecer dentro colégio eleitoral, tornando a eleição ainda mais indireta. Os delegados enviados para participar do colégio eleitoral de três estados do sul (Flórida, Carolina do Sul e Louisiana) não seguiram as regras estabelecidas pelas leis dos estados. Segundo a lei, um partido vence o voto estadual e os seus delegados representam o estado. Nesta eleição, o partido democrata venceu nestes estados e enviou suas próprias delegações. Entretanto, as câmaras e o governadores republicanos também mandaram o mesmo número de delegados. Obviamente, isso resultou numa crise constitucional que para ser resolvida foi necessária a criação de uma comissão temporária para liderar o colégio eleitoral. A comissão tinha 15 membros oriundos do Senado, da Câmara e da Corte Suprema em número proporcional. Neste grupo 8 eram republicanos e 7 democratas. Foi essa comissão que decidiu a eleição e daí foi feito, talvez, o maior acordo da história dos Estados Unidos – o Compromisso de 1877. A comissão, de maioria republicana, decidiu que o seu candidato Hayes seria o presidente. Todavia, para evitar conflito com seus rivais democratas, eles também concordaram em retirar todas as tropas federais do sul, efetivamente encerrando a Reconstrução.
Como resultado, os estados que antes estavam ocupados por tropas federais aprovaram uma série de leis para restringir e retirar os direitos dos negros. Essas leis eram chamadas de Jim Crow Laws. Nestes estados foi estabelecido um governo de apartheid que permaneceu até a década de 60 do Século XX. Ainda hoje, os efeitos da Jim Crow são sentidos diariamente por milhões e milhões de pessoas. Com os racistas de volta ao poder no sul, o KKK não era mais tão necessário para a manutenção do poder deles. A supremacia branca havia vencido pela via institucional. Não havia necessidade de uma milícia agir extrajudicialmente quando se podia contar com o apoio dos chefes da polícia e políticos locais. O que pavimentou o caminho para que no final do Século XIX a corrente nacionalista do America First ganhasse proeminência entre muitos cidadãos brancos da classe trabalhadora que, não muito diferente do que vemos hoje, estavam frustrados com outra recessão econômica global e direcionavam suas insatisfações aos trabalhadores negros e imigrantes. Essas frustrações não desapareceram com o tempo, elas cresceram e se tornaram mais radicais. No início do século XX, o KKK foi reconstituído e adotou o America First como seu slogan oficial e criou o maior movimento milicano na história dos EUA que através de uma campanha de terror contra a população negra, resultou no linchamento de milhares de pessoas.
Apesar das alegações de Trump de que a eleição foi fraudulenta, não acho que veremos uma situação semelhante ao que aconteceu em 1877. No entanto, isso não quer dizer que não possamos aprender algo com o que aconteceu no passado. Quando os políticos se encontram em um governo dividido, um acordo, principalmente quando não se leva em conta as demandas da classe trabalhadora, nunca é o remédio ideal para um desastre em potencial. A classe trabalhadora estadunidense, independente da identidade racial ou étnica, está profundamente frustrada. Desde a década de 1970, os salários permaneceram estagnados, enquanto, as elites viram seu capital disparar. O resultado é uma desigualdade absurda! Essa frustração não pode ser resolvida por meio de concessões entre as grandes corporações e os partidos políticos. Só pode ser resolvido por meio de ação direta ousada que é distribuindo riqueza dos ricos aos pobres, proporcionando acesso à saúde e educação universais, garantindo empregos e enfrentando a catástrofe climática por meio de propostas como o Green New Deal.
Se Joe Biden fizer o que fez durante toda a sua carreira e tentar fechar acordos com os republicanos, há grandes chances que o trumpismo se fortaleça e se radicalize de uma forma que poderá moldar nosso futuro. Além disso, mesmo não estando na Casa Branca, o Trump pode continuar liderando o movimento, se preparando para uma candidatura à presidência em 2024. Isso seria quatro anos de comício de Trump.
O conflito é importante. É o motor da história, cria os ventos do progresso e é a única forma de salvarmos o planeta.
Uma saída dessa dinâmica parece muito difícil de imaginar, podemos dizer que é impensável, mas, duas coisas dentro dos EUA que me dão esperança para nosso futuro: o ressurgimento de uma esquerda nos últimos anos e a onda de protestos que explodiu no país inteiro. Ambos demandam mais do que a saída de Trump, demandam justiça social – o que soa como algo radical nos dias hoje. Esse é o grande desafio da nossa geração, fazer o impensável acontecer. Nas palavras de Raymond Williams: “Ser verdadeiramente radical é tornar a esperança possível, em vez do desespero convincente.” Para isso acontecer nós temos que ser radicais em nossas convicções.
Para saber mais sobre política e história dos EUA e das Américas siga o podcast Camarada Gringo do selo NINJACast e o canal homônimo no Youtube.