Por Cássia Lopes e Cleo Manhas

O Supremo Tribunal Federal está diante de uma decisão crucial: frear a corrosão do orçamento público provocada pela expansão descontrolada das emendas parlamentares. Nos últimos anos, o Brasil tem experimentado uma distorção institucional sem precedentes. Deputados e senadores passaram a controlar diretamente uma fatia cada vez maior dos recursos da União, invertendo a lógica do presidencialismo consagrado pela Constituição de 1988 e confirmado no plebiscito de 1993.

Em 2024, as emendas parlamentares chegaram a R$ 40,89 bilhões, o equivalente a 27% dos gastos discricionários do governo federal. Esse valor supera o orçamento de ministérios inteiros e compromete a capacidade do Executivo de planejar e implementar políticas públicas com racionalidade e eficiência. Trata-se de um verdadeiro “parlamentarismo orçamentário” sem os freios e contrapesos que qualquer sistema parlamentarista exige.

A Constituição é clara ao atribuir ao Poder Executivo a responsabilidade de planejar e executar o orçamento, com base em três instrumentos articulados: o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA). Ao transformar em obrigação legal a execução de emendas individuais e de bancada, o Congresso rompe esse equilíbrio entre os poderes e desfigura o processo orçamentário.

Durante audiência pública convocada pelo STF em junho, representantes da Câmara e do Senado tentaram justificar o modelo atual com dois argumentos centrais: o fortalecimento da democracia e o atendimento a demandas locais supostamente ignoradas pelo Executivo. Nenhum deles se sustenta.

A democracia não se fortalece quando o acesso a recursos públicos depende da proximidade de prefeitos e governadores com deputados e senadores. Pelo contrário, o atual sistema aprofunda desigualdades, favorece redes clientelistas e distorce as prioridades nacionais, enfraquecendo o papel transformador da política.

Também é falaciosa a ideia de que as emendas parlamentares são a única forma de atender às necessidades locais. Muitas dessas demandas realmente são negligenciadas, mas o modelo atual fragmenta recursos em obras e serviços pontuais, ignorando diagnósticos sociais e prioridades pactuadas. Auditorias da Controladoria-Geral da União mostram que recursos poderiam financiar programas estruturantes nas áreas de saúde indígena, educação, igualdade racial, transição energética e combate às mudanças climáticas. Em vez disso, viram moeda de troca política.

A hipertrofia das emendas vai na contramão dos princípios constitucionais da eficiência (art. 37), economicidade (art. 70) e planejamento (arts. 165 a 169). Rebaixa o orçamento público à lógica da sobrevivência eleitoral e compromete a ação estratégica do Estado em reduzir desigualdades e promover direitos.

Diante desse cenário, o STF tem a oportunidade de recolocar o orçamento a serviço do interesse público. O Inesc defende o fortalecimento do PPA, da LDO, da LOA e da participação social como instrumentos legítimos para definir coletivamente as prioridades do país. O orçamento deve ser mais que um instrumento técnico: é um pilar democrático que pode — e deve — servir à efetivação de direitos humanos e ao combate às desigualdades.

Se não houver limite ao uso político das emendas, corremos o risco de institucionalizar um sistema opaco, injusto e distante da cidadania. O Brasil precisa retomar a centralidade do planejamento estatal, com foco em justiça social, equidade e participação. O orçamento não pode ser moeda de troca. É tempo de o Supremo reafirmar essa verdade.

O Inesc seguirá contribuindo neste debate para que o orçamento possa ser ferramenta de realização de direitos e redução das desigualdades, priorizando as populações vulnerabilizadas. Nossos princípios são o financiamento do Estado com o máximo de recursos para investimentos sociais e ambientais, realização progressiva dos direitos humanos, não discriminação e promoção da igualdade e participação social.

Sobre os autores

Cássia Lopes é bacharel em Direito e Assessora Política do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), atuando no acompanhamento do Parlamento.

Cleo Manhas é educadora e doutora em Educação pela PUC/SP. Assessora política do Inesc, atua nas pautas de orçamento e direitos, justiça fiscal e educação.