Por *Ronaldo T. Pagotto

“Acostuma-te à lama que te espera!
O homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.”
— Augusto dos Anjos, Versos Íntimos (1906)

Estas notas não pretendem oferecer uma avaliação global do tema, tampouco propor caminhos definidos. Limitam-se a reunir pontos e reflexões que contribuam para o debate sobre a atual política de segurança pública.

O combate ao chamado crime organizado — um conjunto heterogêneo de forças paramilitares sustentadas por atividades ilegais — é um consenso social. Parte desses grupos caminha rapidamente rumo à mafialização; outra parte nasce das próprias entranhas do Estado. Trata-se de um fenômeno complexo, com destaque para o PCC, o Comando Vermelho (CV) e as milícias.

O Rio de Janeiro é amplamente identificado com a presença dessas organizações, berço de grupos que se espalharam nacionalmente. O estado também foi pioneiro em ações malsucedidas que, em vez de conter, ampliaram o problema: o Bope e outras forças especiais com autorização tácita para matar, operações simbólicas marcadas por altos números de mortos e pouca efetividade, e intervenções militares inócuas, como as UPPs e as GLOs.

Na década de 1990, a legislação fluminense chegou a premiar policiais por criminosos mortos em operação — um verdadeiro incentivo à letalidade estatal. A medida foi amplamente criticada à época, mas, recentemente, voltou a ser cogitada. Não parece coincidência.

A discussão pública, estimulada pela imprensa, mantém uma tônica constante: os territórios de vida são apresentados como territórios do crime. Comunidades são chamadas de “áreas do grupo X ou Y”. Jovens — majoritariamente negros e pobres — são tratados como suspeitos por definição. A mídia, nesse processo, tem papel central na estigmatização das periferias e na consolidação da associação entre pobreza e criminalidade.

As facções produzem episódios de extrema violência, mas parte dessas forças nasce das próprias milícias — compostas, em muitos casos, por agentes públicos. Esses episódios, por sua vez, são usados para legitimar operações letais, frequentemente apoiadas por governos, parlamentares e veículos de comunicação.

A recente operação mobilizou cerca de 2.500 agentes das forças estaduais — Policiais Militares, Civis e grupos especiais, especialmente o Bope. O saldo foi de 121 mortos (quatro deles policiais) e 113 presos. Não há registros de feridos: ou foram mortos, ou presos. A proporção — dez policiais para cada preso ou morto — é confortável em termos militares, mas inaceitável em termos de segurança pública.

A operação pode ser dividida em duas fases: (1) incursão em território sob controle das facções, de maior exposição e possibilidade de fuga dos grupos armados; e (2) o cerco, planejado para forçar a fuga em direção a uma área aberta de mata — sem moradores —, criando condições para o abate em massa dos fugitivos.

A ação durou mais de dez horas, iniciando antes do amanhecer e estendendo-se até o início da noite — tempo suficiente para avançar do confronto ao cerco e consumar o que pode ser descrito como massacre, muito além de uma chacina.

Até o fim do dia, os números oficiais omitiram os mortos da mata — local do cerco e das execuções. A operação foi desmobilizada ao anoitecer do dia 28, deixando um rastro de morte e abandono. Sem apoio institucional, moradores buscaram corpos e sobreviventes durante a madrugada. Essa conduta da polícia é gravíssima: caberia a ela preservar a área para perícia, mas, ao abandoná-la, facilitou a alteração das cenas do crime. É razoável supor que isso tenha sido intencional.

Raíssa Galvão relatou que as forças policiais alegaram falha nas câmeras corporais, por falta de bateria após 12 horas de uso. É inacreditável que, em uma operação dessa magnitude, nenhuma imagem tenha sido preservada — o que sugere desligamento deliberado.

Os resultados revelam o caráter da ação: não houve sobreviventes. Desde as chacinas de Acari, Vigário Geral e Candelária até as operações no Alemão, Jacarezinho e Vila Cruzeiro, as autoridades enfrentaram problemas justamente por causa dos sobreviventes e testemunhas. Nesta, há relatos da fase inicial, mas nenhuma testemunha da fase de cerco e execução.

Mais de 70 mortos na mata indicam execuções sumárias. Mesmo que, em hipótese extrema, todos fossem criminosos, é aceitável uma operação com um preso para cada morto? Isso só seria plausível se o crime organizado tivesse poder militar equivalente ao do Estado — o que não se verifica.

Além da ausência de câmeras, testemunhas e sobreviventes, soma-se a narrativa oficial unificada: todos os mortos seriam criminosos armados, legitimando a ação. A história do crime organizado e a morte dos quatro policiais são usadas para justificar execuções, configurando uma autorização extrajudicial para matar.

A apuração foi igualmente comprometida: cenas violadas, corpos removidos pela população e acesso restrito a perícias. Tudo isso reforça a suspeita de encobrimento.

Em termos concretos, a operação não produziu resultados: não desmantelou o Comando Vermelho, não libertou territórios e não prendeu lideranças. As apreensões de armas, drogas e dinheiro foram irrisórias.

O ritual pós-operação seguiu o script: a polícia afirmou que todos os mortos eram criminosos, negou execuções e atacou quem questionou, acusando-os de “defender bandidos”.

O governador Cláudio Castro, inicialmente, tentou justificar a ação como “normal”, alegando resistência incomum e falta de apoio federal. Diante da resposta do Governo Federal, mudou o discurso, enquadrando a operação como sucesso no combate ao crime. A grande imprensa, especialmente a Rede Globo, legitimou a versão oficial, com raras vozes dissonantes.

A resposta do Governo Federal foi tímida. A reunião convocada por Lula na manhã do dia 29 limitou-se à oferta de apoio técnico e à presença de ministros — sem enfrentamento político real. O episódio expôs falta de coordenação e hesitação diante da gravidade dos fatos.

Enquanto isso, a direita e a grande mídia ocuparam o vácuo, erguendo uma hegemonia narrativa: a da legitimação e da anistia prévia. Surgiu até um “Consórcio pela Paz”, inspirado em Sun Tzu: “Se queres a paz, prepara-te para a guerra.”

A segurança pública é complexa, mas a direita a trata como simples. Essa assimetria desequilibra o debate. Enquanto o campo conservador explora o medo e o populismo penal — “mais prisões”, “menos direitos”, “bandido bom é bandido morto” —, o campo progressista tenta enfrentar as causas estruturais da violência. Para a direita, uma sociedade amedrontada é terreno fértil para o autoritarismo.

A esquerda tem propostas e experiências concretas, mas nenhuma política isolada dá conta da dimensão nacional e internacional das organizações criminosas, que hoje se infiltram tanto na ilegalidade quanto na legalidade, conformando estruturas mafiosas.

O embate é claro: de um lado, a justificação prévia da operação, tratada como sucesso militar e moral; de outro, os setores democráticos que exigem apuração real e rejeitam autorizações genéricas para matar.

Entre dúvidas e evidências, resta uma conclusão inevitável: uma operação com dez policiais para cada preso ou morto, mais de 70 corpos abandonados e nenhuma prova pericial preservada só pode ser definida como um massacre planejado. Seu objetivo não era combater o crime, mas impor uma falsa dicotomia — “apoia ou não apoia bandidos?”, “combate ou não o crime?” — e pautar a sociedade pelo medo.

E, em parte, esse objetivo vem sendo alcançado — pela omissão, pela timidez e pelo cálculo político.


*Ronaldo é advogado e coordenador do Projeto Brasil Popular, iniciativa dos movimentos populares com fundações partidárias para discutir um programa de desenvolvimento para o país.