Obrigada, Elza!
Por Renata Souza e Marina Iris A voz é um instrumento perfurante. A de Elza Soares, mulher preta, periférica, mãe e uma das maiores cantoras que o Brasil pariu, feriu de morte inúmeras tentativas de silenciamento pelo caminho, arrombou as portas do inaceitável planeta fome e tocou fundo o coração do mundo. Seu canto derrubou […]
Por Renata Souza e Marina Iris
A voz é um instrumento perfurante. A de Elza Soares, mulher preta, periférica, mãe e uma das maiores cantoras que o Brasil pariu, feriu de morte inúmeras tentativas de silenciamento pelo caminho, arrombou as portas do inaceitável planeta fome e tocou fundo o coração do mundo. Seu canto derrubou muros, construiu avenidas pelas quais ela nunca desfilou sozinha. Malandros, guris, Marias de Vila Matilde e tantos de nós a acompanhamos, nos emocionamos e nos fortalecemos com sua história.
Na última quinta-feira, 20 de janeiro de 2022, nossa rainha se encantou. Sua vida de encontros e despedidas teve seu último ato marcado por um imenso simbolismo: Elza se foi no mesmo dia em que Mané Garrincha, com quem a cantora viveu um relacionamento intenso, nos deixou, 39 anos atrás. Era também Dia de São Sebastião, padroeiro de sua escola do coração, a Mocidade Independente de Padre Miguel. Encantamento foi e continuará sendo seu sobrenome.
Exemplo de humanidade, Elza Soares segue imortalizada nas canções, nas palavras e na grandeza de sua existência. Foi uma mulher humana, uma cantora inteira, de timbre cortante e belo, como o país que ajudou a construir e transformar até o fim de sua trajetória.
Em 1983, Carlos Drummond de Andrade usou a maestria de suas palavras para se despedir do craque Garrincha: “O pior é que as tristezas voltam, e não há outro Garrincha disponível”. Na atual conjuntura, quando vemos nosso país entrar novamente no mapa da fome e o nosso retorno a tantas tristezas passadas, dói demais no coração saber que agora não temos Elza em nossos dias. Ficamos com sua obra e com a responsabilidade de seguir seu legado.
Em seus 70 anos de carreira, a voz do milênio desentalou da garganta de milhares de mulheres pretas o grito por respeito. “Eu não uso o pescoço para enterrar no peito não, uso o pescoço para ser erguido. E a cabeça também. Como mulher negra, tenho que botar o peito para frente”, ela dizia com olhar firme e a certeza de quem enfrentou a vida.
Daqui, nós, mulheres pretas, seguimos exaltando sua existência, dando continuidade a sua luta, seja na cultura, no parlamento, no jornalismo, no esporte, em todos os lugares que ocupamos e nos que ainda ocuparemos. Nossa reverência será eterna como Elza. A preservação de sua memória também será. A Medalha Tiradentes que, devido à pandemia, não tivemos a oportunidade de entregar em mãos será motivo de encontro para que juntas possamos prestar mais essa homenagem a ela. Elza Soares é pra sempre, é ancestral.
Obrigada, rainha!