O vírus e as trabalhadoras sexuais na Guaicurus, em Belo Horizonte
Breves notas sobre a resistência e a solidariedade em tempos de pandemia
Por Clara Luisa Oliveira Silva e Caroline Rodrigues Silva
Desde o início oficial da pandemia de coronavírus no Brasil, em fins de fevereiro, a sensação que temos é que nossa vida virou de cabeça pra baixo. Muitas mudanças vieram e continuam chegando sem pedir licença. Percebemos, a partir da maioria de nossas relações presenciais ou virtuais, os trânsitos que se dão entre o temor da infecção pelo vírus ainda pouco conhecido pelos cientistas, a preocupação sobre o retorno de atividades, remotas ou não, a ansiedade que marca os planos de estocar ou não comida, o receio de sair para fazer compras no mercado e trazer o coronavírus pra casa, em detrimento daqueles e daquelas que se questionam sobre se vai trabalhar para conseguir ou não comida. Não são raras as discussões que argumentam sobre a dinâmica desigual trazida à tona pela pandemia. Contudo, nos perguntamos, a problematização da disparidade está mesmo tendo a lente ampliada para os que antes do contexto da pandemia já eram inseridos às margens da sociedade?
Escrevemos este texto buscamos olhar para essa dinâmica, a qual se mostra absolutamente perversa, na medida em que se identificam as desigualdades que conferem para alguns, os privilégios, como o home office e, para outros, os efeitos mais diversos que surgem das vulnerabilidades que acumulam. Nossa escrita surge ainda de um espaço construído a partir de interesse de pesquisa sobre o trabalho sexual no Brasil e, mais especificamente, no caso de uma das pesquisadoras[1], a partir de um lugar de produção de conhecimento (e afetos) sobre a região da Guaicurus[2] e, principalmente, sobre e com as mulheres que ali exercem o trabalho sexual. Durante o correr da pandemia, vimos a necessidade de partilhar existências e resistências de parte dos grupos de mulheres trabalhadoras sexuais, as quais a maioria da sociedade, quando conveniente, insiste em não ver.
É preciso dizer que partimos da premissa de que trabalho sexual é trabalho. Demarcarmos, de antemão, que essa é a nossa posição política em relação ao que estudamos em nossas pesquisas. Ao contrário do que temos lido nos comentários no fim de algumas matérias que sempre circulam sobre prostituição, especialmente neste tempo de pandemia, é preciso enfatizar que trabalho sexual não é pecado, não é crime. No Brasil, apesar de não ser regulamentado, o trabalho sexual aparece como ocupação no Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) desde o ano de 2002.
Nesse sentido, é importante demarcar o trabalho sexual como um trabalho, pois, esse período de pandemia escancarou, em tons mais fortes, o retrato da desigualdade social e da precarização das relações de e no trabalho que marca a situação de grande parte de trabalhadores e trabalhadoras neste país, dentre estas, as trabalhadoras sexuais. Sabemos que são inúmeros os corpos desassistidos pela regulamentação do trabalho. Assim como os trabalhadores de entrega dos aplicativos, as trabalhadoras sexuais, estão incluídas nas categorias que sofrem pela ausência de proteção do trabalho não regulamentado. Isso mesmo, compreendidas na desaparição conivente e como ruptura do invisível, é essencial lembrar que fazem parte da democracia brasileira (ou pelo menos, a que acreditamos ter no país) que, pelo menos em tese, deveriam situá-las como sujeitas políticas de direitos.
Em meio a tantas contradições, ressaltamos que os hotéis na Guaicurus foram fechados a partir do dia 23 de março, consequência do cumprimento do Decreto nº 17.328 da Prefeitura de Belo Horizonte que previa o funcionamento apenas de serviços essenciais na capital mineira. Cerca de quase 2.000 mulheres cis e trans ficaram sem o local de trabalho, e parte significativa dentre estas ficaram sem o local de moradia. Para quem desconhece, muitas mulheres que trabalham nos hotéis da Guaicurus migraram para Belo Horizonte a partir de cidades do interior de Minas ou de outros estados.
Na semana antes do fechamento dos hotéis, mesmo que à distância, acompanhei[3] a aflição das trabalhadoras sexuais com as quais tenho, desde 2018, relações de amizade em função da minha pesquisa de doutorado desenvolvida na região. Percebi as inúmeras preocupações diante das incertezas que aumentaram na vida dessas mulheres durante a pandemia, bem como tive notícia e acompanhei de perto (mas longe) a disposição das trabalhadoras sexuais para lutar e resistir aos processos de invisibilização que historicamente caracterizam as vidas de quem exerce o trabalho que exercem no Brasil. Aliás, aqui devemos reconhecer que, há mais de 30 anos, e a partir de diversas redes[4], o movimento de prostitutas no país tem construído uma história de luta contra o estigma e de protagonismo na elaboração de diversas políticas públicas, inclusive (mas não somente), da política de enfrentamento às ISTs.
E é diante do cenário de lutas para garantir a presença de direitos básicos negados, potencializado pela vivência mundial da pandemia, que afloram as vulnerabilidades, mas não somente. No meio de tudo isso, é possível (ainda bem) vislumbrar as resistências. Fátima Muniz, fundadora do coletivo de trabalhadoras sexuais denominado Coletivo Clã das Lobas, em Belo Horizonte, desde 2018, nos informa, por exemplo, de seus movimentos no sentido de buscar ajuda para a compra de passagens de algumas mulheres que poderiam voltar suas cidades de origem, e também de abrigos na capital mineira que poderiam acolher outra parte das mulheres já que não foi permitido que ficassem nos hotéis sem pagar a tal diária[5].
Na impossibilidade do trabalho mais ativo na sociedade de modo geral, o auxílio chamado de “emergencial” foi criado. Entretanto, demorou a ser aprovado pelas autoridades e, ainda a essa altura da crise financeira e sanitária, se mostra problemático, como denunciado em outras esferas, (ver se tem alguma reportagem do Brasil de fato). Assim como outros homens e mulheres, trabalhadores e trabalhadoras informais, o auxílio não veio a tempo para todas as mulheres trabalhadoras sexuais. Ao passo que, mesmo entre as pessoas qualificadas a recebê-lo, têm-se o pagamento da terceira parcela em curso, em contraposição, há muitas pessoas que não receberam sequer a primeira parcela ou nem mesmo conseguiram efetivar o cadastro para a aprovação. Não diferente, é esse o contexto de parte das mulheres na Guaicurus por conta de inúmeros problemas burocráticos nos documentos, aspectos de identificação, etc.
A necessidade do isolamento social passou a ser um imperativo recomendado pela ciência, embora tal imperativo não se torne uma realidade para todos e todas. O “fique em casa, se puder”, como dito, não é pra todo mundo e, por decorrência, não é para todas as trabalhadoras sexuais que exercem, portanto, um trabalho informal. Apesar de toda paralisação, necessária para a pandemia, as contas não pararam e não param de chegar. Assim, o dinheiro que elas necessitam para quitar a conta de água, da energia elétrica, para pagar o aluguel, para comprar a própria comida e alimentar a família (esta, como dissemos antes, por vezes, morando em outras cidades) falta e precisa ser conquistado a cada dia. Por isso, muitas mulheres, apesar do fechamento dos hotéis e das recomendações sanitárias de isolamento social, ainda continuaram trabalhando nas ruas do entorno da praça da rodoviária. Todavia, é notório que o isolamento repercute na redução do movimento de pessoas nas vias públicas e, por extensão, na redução dos clientes que procuram pelos serviços dessas mulheres.
Outra parte das trabalhadoras sexuais, cis e trans, mesmo em suas casas ou em abrigos temporários arranjados pelos coletivos que compõem, fizeram e tem feito ações de grande importância a fim de minimizar os efeitos nefastos dessa pandemia para a categoria. Ressalto aqui os trabalhos dos grupos que, ainda antes da pandemia, foram formados sob o financiamento do Edital Mina, o qual busca apoiar as ações políticas das trabalhadoras sexuais em Belo Horizonte. Especialmente, fui madrinha de um destes grupos, o de Educação e Cultura, e pude acompanhar, dentre outros movimentos, a elaboração de uma cartilha sobre o que é fake news ou não em relação ao coronavírus, além da distribuição de kits de higiene para que as mulheres retornem ao trabalho de modo mais seguro.
Reportagens em uma rede de televisão local mostraram a doação de cestas básicas por parte de algumas organizações como a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (ABRASEL) e a Cruz Vermelha. Grupos religiosos também promoveram ações de ajuda às trabalhadoras sexuais, e cito aqui as ações que tenho visto, lido sobre ou escutado por meio dos áudios que a Fátima Muniz me envia desde o início da pandemia. Um grupo de orientação católica, por exemplo, tem, dentre outras ações, oferecido acompanhamento psicológico à distância como uma forma de apoiar e amenizar as ansiedades das mulheres. E tem a atuação dos grupos religiosos de base protestante, os quais vejo, pelas redes sociais, em ações de distribuição de cestas básicas, itens de higiene e marmitas na rua Guaicurus.
Temos a solidariedade de alguns setores da sociedade conforme vimos nas ações destes grupos. Mas para alcançar ainda o grande número de mulheres que precisam, e precisam todo dia, algumas vakinhas foram abertas a fim de arrecadar recursos para a compra de comida, produtos de limpeza, e itens que não fossem doados por outros grupos, mas que se fazem necessários para a reprodução cotidiana da vida. Tais recursos visam permitir que essas mulheres vivam este tempo com dignidade, aspecto que para algumas pessoas na sociedade é algo sequer problematizado, pois, partem de lugares privilegiados. Desse modo, ressaltamos e convidamos para contribuição com a vakinha do Coletivo Clã das Lobas, ainda ativa (AJUDE, pois mesmo depois de quase 4 meses do início da pandemia, a situação está longe do que seria o “normal” (se é que antes de tudo isso estávamos vivendo em um país e mundo normais).
Entendemos que é preciso fazer a crítica sobre a atuação incipiente do poder público e cobrar mais presença e efetividade no que se refere às ações aos grupos de pessoas que são historicamente vulnerabilizadas na sociedade, como é o caso das trabalhadoras sexuais. Cadê o Estado nessa hora? É a pergunta que talvez você faça. Aprendemos que é dever do Estado garantir os direitos fundamentais presentes na constituição de 1988 a todos os cidadãos e cidadãs deste país. Mas em um momento de avanço do conservadorismo, de retrocessos no campo das políticas sociais, de constantes negacionismos da gravidade da pandemia por parte de agentes públicos e políticos, uma pergunta que fazemos é: o que esperar deste Estado? E outra pergunta: para quem isso realmente vai passar?
Ser resistência no cotidiano apesar de tudo. Essa é uma das preciosidades que tenho aprendido com as trabalhadoras sexuais ao longo desses anos em que as relações de pesquisa se transformaram em afeto. Na pandemia não está sendo diferente. Mesmo distante vejo que essas mulheres, filhas, mães, avós[6], irmãs, amigas, esposas, companheiras, ativistas resistem apesar de tudo e, principalmente, apesar do covid-19.
[1] Aqui trata-se especificamente da Clara Luisa Oliveira Silva que desenvolve uma pesquisa sobre as relações que entre as trabalhadoras sexuais e os agentes de grupos religiosos que desenvolvem trabalhos naquela região boêmia de Belo Horizonte.
[2] Atualmente, a Guaicurus tem cerca de 28 hoteis, dentre estes, hoteis especificamente de mulheres cis e outros de mulheres trans. Ainda se observam as cabines de strip tease, os lugares de exibição de filmes pornôs. E para além disso, na região da Guaicurus vemos salões de beleza, restaurantes, lanchonetes, lojas de embalagens, lojas de “produtos chineses” (como falamos em BH), etc.
[3] A escrita com o verbo em primeira pessoa diz respeito ao relato de campo da autora Clara Luisa Oliveira Silva.
[4] Rede Brasileira de Prostitutas (RBP); Central Única de Trabalhadores e Trabalhadoras Sexuais (CUTS); Articulação Nacional de Profissonais do Sexo (ANPS).
[5] O valor das diárias, segundo informações das trabalhadoras sexuais, entre R$ 70 reais e R$ 110 (ou até mais). Depende do turno trabalhado (manhã, tarde/noite), a estrutura que o hotel oferece ou não.
[6] Referência ao livro de Gabriela Leite, Filha, Mãe, Avó e Puta, publicado em 2009.