O verdadeiro sentido de ser woke e sua relação com a América Latina

Nos Estados Unidos, formou-se o movimento antiwoke para se opor à agenda de direitos

Por Bruno Bazan

Há vários meses, circula nas redes sociais a ideia de que a cultura woke saiu de moda e se aponta uma série de retrocessos em matéria de direitos humanos a nível internacional. Em certos momentos, parece apenas mais uma formulação no estilo de “as feministas foram longe demais” ou “o progressismo exagerou”. Para aqueles que não estão familiarizados com o termo nem com esses debates, aqui vai um breve resumo.

O que significa “woke”?

Woke é um termo do inglês americano que significa “estar acordado” ou “consciente” e se popularizou nos Estados Unidos na década de 1960 devido à luta pelos direitos civis da população negra. Era uma mensagem, uma forma de lembrar que estavam em resistência. Em 2010, nos EUA, o movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) reacendeu o uso do termo e ampliou seu significado. No século XXI, com a hashtag #StayWoke, por exemplo, passou a englobar não apenas uma postura antirracista, mas também posições feministas e a defesa dos direitos LGBTI, entre outros.

Como acontece com a lógica de debate atual nas redes sociais, e de uma maneira particular e histórica nos Estados Unidos, surgiu o movimento antiwoke para se opor à agenda de reivindicações representada pelo movimento woke. O movimento antiwoke se baseia nos discursos mais conservadores e surge como reação a certos debates das primeiras décadas deste século.

O que isso tem a ver com a América Latina?

Antes de tudo, falamos disso porque vivemos em um mundo hiperconectado, onde certos temas e palavras são compartilhados globalmente. Mas, principalmente, porque temos uma tendência consolidada de adotar palavras, frases ou ideias do norte global e aplicá-las ao nosso contexto. Desde os tempos do antigo MSN, percebe-se que qualquer coisa, por mais trivial que seja, ganha mais atenção e prestígio quando dita em inglês.

Embora muitos temas tenham um diálogo internacional, eles não acontecem da mesma forma nem representam o mesmo em diferentes países ou regiões. Por exemplo, há alguns anos, o movimento #MeToo, originado no norte global para denunciar agressões sexuais, foi amplamente difundido. Muitas pessoas daqui começaram a usá-lo, como se o movimento Ni Una Menos não tivesse começado dois anos antes em nosso próprio país. E nem se fala da resistência de grande parte da sociedade em reconhecer o racismo estrutural em que vivemos.

Além disso, há grandes diferenças entre o #MeToo e o Ni Una Menos, seja no contexto de surgimento, nos espaços de representação política ou nos casos emblemáticos que impulsionaram cada movimento. Isso pode parecer óbvio, mas quando tentamos encaixar experiências multitudinárias em categorias únicas, acabamos simplificando tanto que distorcemos completamente o sentido dessas experiências.

É essencial avaliar quais sentidos se perdem em nossa história recente ao equiparar lutas e replicar disputas. Algo semelhante acontece quando tudo é debatido sob a dicotomia progressismo-antiprogressismo, como se os sentidos de igualdade, liberdade e direitos não estivessem sempre em disputa.

O recorte da nossa realidade através de um anglicismo muitas vezes reflete uma visão de classe, desejos e aspirações de um setor específico, e não da sociedade como um todo. Na América Latina, coexistem contradições profundas e expressões culturais diversas.

Num momento em que discursos ultraconservadores de direita ganham força no mundo, não podemos analisar essa direitização a partir de uma perspectiva estrangeira. Enquanto nos Estados Unidos se fala no fim da cultura woke com a Disney eliminando personagens LGBTI ou racializados, na Argentina, por exemplo, o programa de TV mais assistido do país exibiu uma das cenas mais emocionantes, protagonizada por uma pessoa trans.

A mãe de Luciana, uma participante trans em Big Brother, entrou na casa para abraçar sua filha pela primeira vez desde que soube da sua transição. Uma mulher pequena, com uma grande cruz pendurada no peito, entrou em um reality show para abraçar sua filha e dizer “te amo”. A cena de uma relação entre mãe e filha trans se torna universal porque, no fundo, todos buscamos amor e aprovação de nossos pais.

Essa cena não apaga os retrocessos em direitos humanos que vivemos no país. Também não significa que estamos melhor que os EUA. Apenas mostra que as transformações culturais sempre são complexas.

Efeito Trump

No mesmo dia em que vimos essa cena emocionante no Big Brother Argentina e Donald Trump assumia a presidência dos EUA declarando que só existem dois gêneros, o humorista Gabriel Lucero resgatou no X um trecho de uma entrevista em que uma pessoa trans não binária usava a palavra “xadre” ou “sadre” para se referir ao seu genitor. Muitas pessoas ouviram esse termo pela primeira vez e reagiram com rejeição, zombaria e desprezo, enquanto outras associavam isso à cultura woke.

Pessoalmente, conheço a expressão há tempos, mas não a uso porque não gosto do som e acredito que tenho vocabulário e sensibilidade suficientes para respeitar identidades sem recorrer a certas formas de linguagem. Além disso, dentro de qualquer movimento sempre houve debates e diferentes formas de enxergar uma mesma realidade. Isso aconteceu nos Encontros Nacionais de Mulheres desde os anos 80, nas organizações da Marcha do Orgulho, nas redes de docentes, atrizes e profissionais – e continuará acontecendo.

Reconhecer essa complexidade nos ajuda a perceber que nem tudo se resume a certas batalhas que parecem mais importantes que outras. Existem resistência e criação que transcendem qualquer grupo organizado em defesa de direitos.

Muitas gerações cresceram consumindo conteúdo da Disney, e isso não impediu que meninos sonhassem em ser princesas ou vice-versa. Construímos nossa cultura LGBTI+ selecionando o que nos faz bem e descartando o que não nos serve.

Criamos formas de viver, de construir família e de ocupar o mundo com nossos entes queridos. Isso não pode ser reduzido à cultura woke e muito menos ser tratado como uma moda passageira.

Este artigo foi publicado originalmente no meio La Nota de Argentina