
O último azul e a primeira esperança
A mágica jornada de envelhecer reinventada na Amazônia por Gabriel Mascaro e Denise Weinberg
Inegável: Estamos vivendo um momento célebre para o cinema brasileiro. Do furor apoteótico de “Ainda Estou Aqui”, passando pelo arrebatamento pernambucano com uma rara vitória dupla em Cannes com “Agente Secreto”, e a sequência de lançamentos que honram diversos Brasis como “Baby”, “Homem com H”, “Kasa Branca”, “Manas” e, mais recentemente, “A Melhor Mãe do Mundo”, é tempo de colheita.
Neste cenário, “O Último Azul” é uma das joias da coroa. O longa acumula o Urso de Prata e Júri no Festival Internacional de Cinema de Berlim, além de melhor filme e atuação no Festival Internacional de Cinema de Guadalajara. Mas nada neste panorama prepara para o que a baba do caracol mágico nos entrega em uma hora e meia de rastro azulado.
Rasante por Manaus, Manacapuru e Novo Airão (Amazonas), Gabriel Mascaro apresenta, de forma igualmente delicada e potente, um drama de jornada com doses de realismo fantástico, numa era onde nem mesmo os filmes de super-herói conseguem assumir o seu tom sobrenatural sem constrangimento.
Para tanto, somos presenteados com Tereza, uma mulher de 77 anos que recebe uma sentença disfarçada de bênção: uma passagem só de ida para uma colônia de idosos.
Mas nós, mulheres, bem sabemos que não tem nada de distópico no exílio compulsório — da “distante” caça às bruxas europeia aos diagnósticos que nos condenavam a lobotomias recreativas, passando pela esterilização forçada de mulheres negras e indígenas, nossa liberdade é cerceada de diferentes formas ao longo da vida. E aqui a pergunta é:
O que fazemos com as velhas?
Entra em cena Denise Weinberg, premiada atriz de teatro e cinema, e é muito divertido vê-la desmantelar os estereótipos da velhice quadro a quadro. Começa cabeça-dura, como gostamos de ver nossos mais velhos, mas aprende ao longo do caminho que existem outras formas de viver a vida. Deixa também muita gente (eu) pra trás quando demonstra destreza entre as pontes precárias e acessos pouco acessíveis entre os igarapés.
É preciso, no entanto, dizer que esse é um meta-personagem. Existe uma diferença gritante sobre o que significa envelhecer para homens e mulheres. Homens de cabelo branco ficam charmosos, ganham papéis complexos e o direito ao descanso. As mulheres, não. E ter Denise, de sessenta e nove anos, com a carreira brilhante que tem, dando vida a ela, escancara isso. Quando fui revisitar sua filmografia no Google, por exemplo, o autocomplete do site era reducionista, citando seu marido, idade e filhos antes dos seus feitos. É a mesma realidade vergonhosa lançada para as mulheres mais velhas nesta e em outras indústrias.

O filme segue fazendo um paralelo com as histórias das mulheres que, após a morte do marido, se reinventam na viuvez — Tereza aproveita seu próprio rito forçado e se permite o sonho, o prazer, o desejo, a alucinação, a aposta, e com isso descobre como voar.
Falando em homens, o que vemos neste romance de formação é um caminho que começa sem homens, passa por eles e então encontra seu triunfo no timão de outra mulher.
A família de Tereza, que conta ainda com a presença luxuosa de Clarissa Pinheiro, não tem espécimes masculinas na sua rede de apoio e, inclusive por isso, despachar a mãe parece uma boa saída — além de produtiva para o governo. É aí que conhecemos Cadu (Rodrigo Santoro) e Ludemir (Adanilo).
Adanilo tem um desafio interessante: representar os amazônicos na tela sem cair no clichê. Fazer isso numa linguagem que por muitas vezes fetichiza o Norte do país é uma grande responsabilidade, que ele cumpre com liberdade. Terminamos o filme com a impressão de que os pequenos trambiques de seu personagem apenas adicionam camadas humanas a ele.
O respeito ao território fica evidente em outros aspectos do filme. Rachel Daisy Ellis, produtora, grifou de forma veemente que o resultado não seria o mesmo sem os profissionais naturais da cidade, mas rejeita o termo “produtores locais”, simplesmente porque não há motivos para que exista uma diferença e o “produtor nacional” seja visto como mais qualificado. Eles são apenas e tudo isso: produtores do filme.
Já Rodrigo Santoro tem outra missão: desconstruir o que é esperado de homens trabalhadores do rio. Conhecemos ele fazendo bingo na cartela da masculinidade performática: mal-humorado, piloto de barco e detentor do conhecimento. Depois, diante dos portais abertos, e não dos muros erguidos, ele derrete, assumindo seu erro perante a mulher da sua vida, e chora no colo de Tereza. O ator, homenageado com o Kikito de Cristal nesta edição do Festival de Gramado, disse que foi exatamente esse elemento que o encantou sobre a personagem. E todos nós caminhamos com ele.
Mas, ao final, é com uma falsa freira que nossa heroína se torna sua versão mais completa. E que lindas cenas formam Denise e Miriam Socarrás juntas. Negra e cubana, Miriam é um dos rostos mais icônicos da cena artística do seu país, vindo do teatro musical pra TV e cinema. Aqui, abraçadas em busca da liberdade (que, no caso dela, é um documento de sua alforria na parede do barco), elas dão o tal tom de plenitude que todo mundo acha que quer na velhice.
Assistir ao que Gabriel Mascaro fez no seu boat movie é uma versão cinematográfica de ver o famoso encontro das águas de Manaus, onde os rios Amazonas e Negro fazem o papel do cinema do Norte e Nordeste — e clamamos para que isso aconteça mais vezes.
Outro encontro, a parceria dele com Denise também constrói um novo imaginário para mulheres e nos dá mais esperança no envelhecer. Essa experiência merece ser compartilhada.
Fica então o chamado: a partir do dia 28 de agosto, netas e avós, mães e amigas, tias e primas têm um encontro marcado com o seu futuro.
Esse sim, pode ser para todas.
