O que levou Bolsonaro ao Planalto: um balanço das eleições de 2018
A eleição mal acabou e Bolsonaro já começou o que anuncia ser um governo desastroso para o país. De toda forma, acho que a compreensão dessa eleição é fundamental para pensar no caminho adiante.
Arrisco aqui um balanço das eleições de 2018, não sem antes fazer duas ressalvas. Estive envolvido como voluntário na campanha presidencial do PT em dois momentos: primeiro na formulação do programa, quando coordenei o capítulo das políticas de comunicação. Depois, logo após o primeiro turno, em ações de engajamento de ativistas. Assim, tudo o que falo deve ser lido com lentes que considerem este viés.
A outra ressalva: errei muito nas previsões que fiz este ano. Não que tenha menosprezado o perigo de Bolsonaro – achava que tínhamos que discuti-lo a sério –, mas menosprezei sim sua capacidade de arregimentar tanto apoio popular e de conduzir a campanha sem apoios partidários e tempo de TV. Menosprezei também a rejeição popular a Alckmin e ao PSDB. Vários amigos alertaram sobre o potencial de Bolsonaro (Leonardo Sakamoto, Pedro Abramovay e Pablo Ortellado, para citar só alguns), mas não consegui enxergar por completo o movimento subterrâneo que acontecia.
Apresento minhas percepções como uma contribuição adicional a vários outros balanços já publicados. Faço ele aqui sustentado em nove pontos:
• Resultado geral
• A condenação e a prisão de Lula
• A não aliança entre o PT e Ciro
• O antipetismo
• A perspectiva antissistema e anticorrupção
• A dificuldade em desconstruir o antipetismo
• Os acertos e erros da campanha
• Notícias falsas e o papel do whatsapp
• A resiliência do PT e o lugar da ‘nova política’
• Resultado geral
Uma eleição que elegeu Bolsonaro não pode ser lida senão como um desastre. Considerando uma perspectiva de esquerda, é verdade que o PT sobreviveu bem, fez 45% no segundo turno, elegeu a maior bancada e 4 governadores. Também é verdade que o PSOL elegeu 10 deputados e passou a cláusula de barreira. Tudo isso é importante e deve entrar na conta, mas mesmo assim o balanço é horroroso. Mas diferentemente de alguns colegas que apontam apenas as responsabilidades da esquerda, acho que precisamos incluir os setores conservadores na análise. Não dá para falar dessa eleição sem entender como foram construídos os sentimentos antissistema, anticorrupção e antipetista. Se os erros da esquerda bastassem para explicar os resultados, o primeiro turno não teria terminado com o Alckmin com 5% e a Marina com 1%. Mais que tudo: não dá para falar desta campanha sem tocar na condenação e na prisão de Lula.
• A condenação e a prisão de Lula
O golpe de 2016 começa logo após as eleições de 2014, mas só se consumou com a condenação de Lula em segunda instância e com sua prisão em 2018. Sem a condenação, Lula era o favorito para ganhar as eleições; sem a prisão, causaria muitos estragos como articulador político. A ação penal que o condenou não para de pé. Moro e os desembargadores do TRF-4 dizem que Lula ganhou um apartamento – em que nunca dormiu, nunca teve a chave, nunca saiu do nome da construtora – em troca de ‘atos indeterminados’ praticados em favor da OAS. Um escândalo. A imprensa brasileira, via de regra, validou o processo, porque sabia que era preciso trabalhar com decisões heterodoxas como essa para impedir que Lula voltasse à Presidência da República. Ainda assim, o PT manteve sua candidatura, já que o TSE tem jurisprudência que permitiria a Lula fazer campanha e ter seu nome na urna mesmo sub judice – nesta eleição, houve cerca de 1.400 candidatos nessa situação. No meio dessa disputa, o Comitê de Direitos Humanos da ONU tomou decisão liminar que obrigava o Estado brasileiro a manter os direitos políticos de Lula – e, portanto, sua candidatura. Mesmo neste quadro, o Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal fizeram enorme ginástica para deixar Lula de fora. Tacitamente, as cortes apontaram que não era possível comprometer o arranjo político promovido pelo golpe.
• A não aliança entre o PT e Ciro
Diante da impossibilidade de manter a candidatura de Lula e tendo em conta o resultado de vitória de Bolsonaro, a conclusão mais fácil é de que a frente ampla era desejável e poderia ter gerado um resultado diferente. Minha dúvida sincera é se ela era possível ou se era mera quimera. A meu ver, nenhum dos lados topou abrir mão do mínimo para a aliança se viabilizar. O PT não queria abrir mão da cabeça de chapa porque tinha o líder disparado nas pesquisas (Lula), calculava que sua sobrevivência política estava ligada à candidatura presidencial e precisava manter a candidatura de Lula para fortalecer a denúncia de prisão política. Ciro, por sua vez, desde 2017 falava claramente em se afastar do PT e não topava ser vice nem de Lula nem de qualquer outro candidato do PT. A manobra do PT que gerou a neutralidade do PSB foi uma reação às tentativas de Ciro de aglutinar PCdoB e PSB com seu PDT. Os dois movimentos não me parecem obscenos – fazem parte do jogo da política –, mas mostram que nenhuma das partes queria mesmo compor com a outra.
Se a aliança, ainda assim, tivesse saído, não é fácil prever o que teria acontecido. A falta de protagonismo do PT poderia ter lhe custado uma bancada muito menor no Congresso e o enfraquecimento de sua referência junto à sociedade. Ciro, por sua vez, mesmo que fosse cabeça de chapa, poderia ter o antipetismo contra si. Ele concorreu sem a etiqueta de petista e teve 12% dos votos, então é difícil alegar força eleitoral de um candidato que teve menos da metade dos votos de Haddad, que pela primeira vez disputava uma eleição nacional. Isso mostra que em termos de peso eleitoral, Ciro tinha menos votos a entregar do que o PT.
De toda forma, acho que é um erro tentarmos explicar essa eleição a partir desta variável da aliança PDT-PT, como se uma estratégia diferente fosse necessariamente levar a um resultado diferente. Pode ser que sim, mas a análise precisa levar em conta o fenômeno do crescimento da direita nos últimos anos no Brasil e no mundo, a lava-jato e sua seletividade, o golpe, a perseguição a Lula e a narrativa midiática que se coloca em posição adversária não apenas ao PT, mas à própria política. Ou seja, é preciso lembrar que tinha muito jogo além daquele jogado pela esquerda e centro-esquerda.
• O ‘antipetismo’
Acho que há dois problemas ao se falar de antipetismo. Um é adotar a generalização sem compreender as diferentes origens da rejeição ao PT nessas eleições. O outro é negar a ideia de que haja um antipetismo e dizer que ele é só um disfarce para a luta de classes e a defesa de uma agenda regressiva. Os principais argumentos de rejeição ao PT observados nas redes eram: 1) o PT quebrou o Brasil e nos trouxe a esse estágio da crise econômica; 2) os governos do PT desorganizaram a sociedade brasileira e nos levaram a essa crise política e social (sensação de insegurança, violência e ‘crise moral’) em que estamos; 3) o PT roubou muito e é o partido mais corrupto do Brasil. Além disso, estava presente a perspectiva dos que sempre rechaçaram o PT por divergência ideológica. Assim, o antipetismo é uma generalização que carrega motivações distintas.
Havia ainda um sentimento de mudança, que rechaçava o PT não por um ‘antipetismo orgânico’, mas por uma percepção de que era preciso buscar uma opção ‘nova’, apostar em um caminho diferente. Em diálogo com esses aspectos, o detalhamento da motivação de voto em Bolsonaro nas últimas pesquisas mostrava três grupos relativamente iguais em tamanho: aqueles organicamente de ultradireita, tanto em questões políticas e sociais como econômicas; aqueles que não tinham Bolsonaro como primeira opção, mas topavam ir com ele por serem contra o PT e aqueles que nem são tão antipetistas, mas viam em Bolsonaro uma possibilidade de mudança.
• A perspectiva antissistema e a anticorrupção
A todos os aspectos do antipetismo listados acima somou-se o questionamento a todo o sistema político, que fez com que partidos e candidatos tradicionais tenham perdido muito espaço. Esse questionamento é diariamente alimentado pela mídia tradicional pela cobertura extensa e sensacionalista sobre casos de corrupção, de menor e maior monta, que acaba por eclipsar a complexidade do funcionamento da gestão pública. Nessa cobertura, os veículos se afirmam como paladinos da moralidade, vigilantes da atuação pessoalmente desonesta dos políticos. No entanto, pouco contribuem para a compreensão do funcionamento do Estado e do caráter estrutural da corrupção dadas as regras do jogo da política brasileira.
É evidente que a corrupção é um problema grave, mas a forma como ela é tratada é que corrói a confiança no sistema político e na democracia. Apenas para tomar alguns exemplos: a propina da Odebrecht, a empresa mais implicada na lava-jato, é estimada em R$ 10,5 bilhões em nove anos, ou cerca de R$ 1,17 bi por ano. Uma enormidade de dinheiro, mas cerca de 1% do orçamento anual da Saúde ou da Educação, ou 0,1% do orçamento anual do Executivo federal. Também não se compara com benefícios que o Estado brasileiro concede para os grandes grupos empresariais. Em 2017, em uma única operação, uma comissão do Ministério da Fazenda isentou o Itaú de pagar R$ 25 bilhões em impostos – mais de duas vezes toda a propina da Odebrecht. O programa de renegociação de dívidas (REFIS) de 2017 esperava arrecadar R$ 13 bi, mas negociações no Congresso diminuíram essa expectativa para R$ 0,5 bi. Ou seja, só o Congresso liberou “uma Odebrecht na lava-jato” para os sonegadores.
Ou seja, a corrupção é um problema grave, mas os prejuízos financeiros diretos que ela traz não a transformam no problema mais grave do Brasil. É evidente que o debate é mais complexo – como já tratei aqui – mas é difícil dizer que os efeitos para população são piores do que uma política de juros pró-rentistas ou um teto de gastos públicos que retira bilhões por ano da educação e da saúde, por exemplo.
Ao simplificar o debate, a mídia tradicional traz a ideia de que tudo poderia ser muito diferente, como se a corrupção fosse apenas um desvio de caráter dos políticos vistos individualmente. Essa perspectiva traz a impressão de que todos os interesses escusos presentes no jogo político poderiam ser eliminados de uma hora para outra, numa visão idealizada da política. Esse questionamento, quando carrega a expectativa de uma mudança súbita e repentina, traz graves riscos para a democracia, pois estimula, direta ou indiretamente, o desprezo pelas instituições políticas.
• A dificuldade em desconstruir o antipetismo
Em cenário totalmente desfavorável, a campanha de Haddad não conseguiu produzir um discurso que rebatesse os três elementos principais que o enfraqueciam: a crise econômica, a crise política e social e os casos de corrupção da lava-jato. Os três elementos eram fatos fortes, palpáveis e sentidos pela população. Portanto não havia como argumentar contra os fatos, mas sim disputar sua interpretação, o que é difícil em um contexto de muitos anos de ataques da mídia, de seletividade do judiciário e do Ministério Público e da exploração política desses fatos pelo centro e pela direita.
Em uma eleição, fica muito difícil mostrar que a crise econômica não foi fruto apenas dos erros do governo Dilma (como as desonerações), mas se alimentou e foi alimentada fortemente pela crise política e por um cenário internacional desfavorável. Haddad tentou fazer isso nos debates, mas é um argumento complicado para sustentar porque não há contrafactual possível. Haddad também tentou mostrar que a crise política foi alimentada por uma movimentação da oposição que não aceitou o resultado eleitoral de 2014 e que promoveu o golpe de 2016. Entretanto, isso exigia que a população interpretasse o PT não só como um ator político que cometeu erros, mas também como vítima de uma oposição que desrespeitou a soberania do voto popular.
O PT também não conseguiu produzir um discurso que desse à corrupção o tamanho que ela tem – nem maior nem menor, como citei no ponto acima. Muito menos tinha um discurso convincente para lidar com o tema da segurança pública, em um cenário de crescimento dos homicídios e de forte sensação de insegurança da população. Dizer que a responsabilidade é dos estados ou que temos de investir em políticas sociais não convence ninguém. Apresentar medidas técnicas de reorganização de responsabilidades federativas também não conseguiu dialogar com o medo e o senso de urgência dos eleitores. Ou seja, ao fim, a campanha de Haddad estava em desvantagem em todos os debates importantes das eleições.
Foram inúmeras as pessoas que sugeriram que o partido deveria fazer uma autocrítica sobre o envolvimento de integrantes do partido com a corrupção e sobre os erros do governo Dilma. Haddad reconheceu vários erros e defendeu punição para todos os envolvidos com corrupção, mas os que cobravam a autocrítica defendiam um discurso mais solene, que implicaria no reconhecimento de que o partido era institucionalmente responsável pelos casos descobertos pela lava-jato. Fazer a autocrítica dessa forma significaria legitimar a narrativa seletiva que atribuía ao partido um papel significativamente diferente dos outros nos escândalos apurados na lava-jato, o que não corresponde à realidade. Nesse sentido, é difícil entender como Jair Bolsonaro, que construiu sua história política no Partido Progressista (partido que mais implicados tinha na lava-jato e que apareceu em todos os escândalos de corrupção), pôde aparecer como mais honesto que Haddad. De um jeito ou de outro, espremido entre a narrativa seletiva e o risco de cavar a própria cova, o PT não encontrou uma forma de diminuir o amargor causado pela lava-jato na boca dos eleitores.
• Os acertos e erros da campanha
Os elementos tratados no ponto anterior compõem o cenário que já estava dado no início da campanha eleitoral, ou no momento em que Haddad assumiu a candidatura petista, em 11 de setembro. Tudo que se poderia produzir a partir daí tinha esse pano de fundo, já complicadíssimo. Durante a campanha, havia muitos esforços paralelos a serem feitos: apresentar o candidato à população, mostrar que era o candidato de Lula, gerar confiança pessoal nele, impedir o crescimento da rejeição além da já ‘precificada’, e tentar lidar com todos aqueles elementos listados acima que compõem o antipetismo. Além disso, a campanha tinha também que tentar rebater a enxurrada de mentiras e notícias falsas. Tarefa inglória.
A campanha conseguiu apontar Haddad como o candidato do Lula e ativar a memória positiva de parte da população. Todo o primeiro turno foi gasto praticamente nesse esforço. A crítica a Bolsonaro demorou demais a aparecer. Quase ocorreu na eleição federal o que aconteceu na eleição municipal, quando Doria bateu Haddad no primeiro turno sem ter sido atacado pela campanha petista. Na virada para o segundo turno, a campanha conseguiu se reposicionar e trazer elementos fortes para o tabuleiro: mostrar como Bolsonaro defendia as mesmas bases econômicas e antipopulares do rejeitado Michel Temer, como ele defendia a violência contra opositores e minorias, e relembrar os avanços do governo petista de Lula. Conseguiu também apresentar o candidato e, ao fim, conquistar a confiança de parte significativa do eleitorado. Mas não conseguiu mostrar que Bolsonaro passou grande parte da sua carreira no partido com mais envolvidos na lavajato (PP). E, principalmente, foi tarefa muito difícil rebater as notícias falsas.
Além disso, a campanha não conseguiu produzir fatos novos na virada para o segundo turno. Seria preciso uma ampliação significativa, a partir de uma negociação política de alto nível, para gerar algum fato político novo. Sem isso, o único fato político relevante até a véspera da eleição foi a matéria da Folha de S.Paulo que mostrou a existência de financiamento empresarial para difusão em massa de mensagens de whatsapp, configurando caixa 2.
Essa ausência de fatos políticos relevantes por parte da campanha atrasou o engajamento espontâneo dos apoiadores de Haddad, que só ganhou tração na última semana. No dia anterior à eleição, as declarações de Joaquim Barbosa e Rodrigo Janot foram sinalizações importantes, mas não houve tempo de valorizá-las politicamente.
• Notícias falsas e o papel do Whatsapp
Um dos grandes personagens dessa campanha foi o whatsapp. Diferentemente das eleições dos EUA, em que o protagonismo foi do Facebook, aqui o debate e a distribuição massiva de conteúdo (inclusive mentiras) aconteceram principalmente no aplicativo de mensagens. A ocorrência de fake news nas eleições foi especialmente intensa a partir dos sete dias anteriores ao primeiro turno, que terminou com Bolsonaro à frente com 46% dos votos válidos. A difusão de mensagens em massa esteve voltada fundamentalmente a criar medo em um eleitorado conservador a partir de questões morais, com a divulgação de mentiras sobre a vida pessoal e a história política de Fernando Haddad e Manuela D´Ávila. As notícias falsas eram sobre questões pouco importantes para o grande debate político, mas de grande relevância para parte significativa do eleitorado. Um dos exemplos mais emblemáticos foi o suposto ‘kit gay’.
A rede de whatsapp de Bolsonaro foi construída ao longo de pelo menos três anos, com uma estratégia profissional de criação de grupos políticos e de interesse geral a partir de administradores que atuavam de forma discreta, mas intencionalmente partidária. Fazendo um paralelo com as formas tradicionais de militância, eles organizaram um competente trabalho de base durante esses anos. Ao mesmo tempo, durante as eleições, as redes de Bolsonaro tiveram alto engajamento orgânico, que se combinou com apoio pago para difusão de mensagens em massa, especialmente às vésperas do primeiro turno, como foi revelado por reportagens do jornal Folha de S. Paulo. Esses envios eram ilegais, já que baseados em financiamento não contabilizado (caixa 2) e em bases de dados compradas.
De sua parte, o PT e os outros partidos não tinham uma estratégia nem de longe similar. A partir da última semana antes do primeiro turno, montou-se uma estratégia de campanha baseada na distribuição de conteúdos top-down para milhares de grupos, que se somou a estratégias descentralizadas de iniciativa de vários coletivos em todo o país. Mas mesmo ao final da campanha não era possível comparar o peso das duas redes.
É difícil mensurar o peso que as notícias falsas tiveram na decisão de voto, mas o fato de grande parte delas estar sustentada em valores morais permite presumir algum nível de influência no voto especialmente de eleitores evangélicos. Para se ter uma ideia, em pesquisa Datafolha publicada no dia 25 de outubro, a diferença de intenções de voto entre Bolsonaro e Haddad era de 12 pontos. Dependendo da religião, a diferença se alterava muito. Entre católicos, a diferença era de 1 ponto, enquanto entre evangélicos a diferença era de 33 pontos.
Ao fim, essas eleições deixaram claro que o whatsapp não pode ser considerada apenas uma ferramenta de comunicação interpessoal. Pela possibilidade de redistribuição exponencial das mensagens e da formação de grupos e listas de distribuição, é uma ferramenta de comunicação de massa. O grande problema do debate político pelo whatsapp é que ela é uma ferramenta de comunicação de massa protegida por total privacidade e anonimato, sem qualquer transparência (críticas similares têm sido feitas por Pablo Ortellado e Leonardo Sakamoto). Isso cria um espaço público ao mesmo tempo volumoso e obscuro, propício para a disseminação de notícias falsas e para a sustentação de um debate público de baixo nível.
A impossibilidade de identificar os responsáveis pelas postagens originais no whatsapp combinado com o volume de mensagens e a velocidade de disseminação criou um cenário de desinformação em que não havia como discernir fatos, interpretações e mentiras. O ambiente durante as eleições foi de ‘apocalipse informacional’. Este tema parece de grande relevância não apenas para o período eleitoral, mas para todo o debate político realizado nas redes, e exige reflexão sob pelo menos dois aspectos: de um lado, o impacto, para a democracia, da comunicação de massa combinada com anonimato e privacidade. De outro, a ausência de formação educacional da população para leitura crítica das informações.
• A resiliência do PT e o lugar da nova política
Considerando todos os elementos desfavoráveis, os 31 milhões de votos obtidos por Haddad no primeiro turno (29% dos votos válidos) e as 56 cadeiras obtidas na Câmara pelo PT são um resultado excepcional, que demonstram a resiliência do partido. Comparado com a queda da bancada do PMDB e do PSDB e com a votação de Alckmin e Marina, o PT mostra que continua contando com a fidelidade de parte do eleitorado e segue sendo o maior partido da esquerda brasileira. Os 16 milhões de votos a mais obtidos no segundo turno, que fizeram Haddad chegar a 45% dos votos válidos, vieram principalmente de apoiadores de Ciro Gomes, Geraldo Alckmin, Marina Silva e Guilherme Boulos, inclusive pessoas que não apoiariam o PT em situações outras, mas o fizeram ante a candidatura de Jair Bolsonaro.
Ao mesmo tempo, houve mais renovação na Câmara dos Deputados do que em todas as eleições desde 1998. Dos 513 deputados que vão tomar posse em 2019, 49% foram reeleitos, número que variou de 54% a 58% entre 1998 e 2014. A maior parte da renovação foi puxada pela direita, especialmente pelo PSL. Na esquerda e centro-esquerda, o PT e o PDT trouxeram nomes novos no Nordeste, enquanto o PSOL trouxe nomes novos no Sudeste e Sul. Mulheres identificadas como parte da renovação política foram bem votadas, como Sâmia Bomfim (PSOL-SP), Tábata Amaral (PDT-SP), Marília Arraes (PT-PE) e Talíria Petrone (PSOL-RJ).
A ideia de renovação também fez com que nomes antes desconhecidos fossem eleitos governadores de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Distrito Federal, Amazonas, Rondônia e Roraima. Vários políticos tradicionais não foram eleitos, como Romero Jucá, Eunício Oliveira, Eduardo Suplicy, César Maia, Lindbergh Farias, Edison Lobão, Marconi Perillo, Cristovam Buarque, Magno Malta, Beto Richa e Roberto Requião. A onda de renovação parece ter sido mais arrasadora para a centro-direita que para a esquerda, mas significou, na prática, um congresso mais conservador.
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Ao fim, a eleição presidencial se transformou num plebiscito entre dois plebiscitos: rejeição ao PT x rejeição a Bolsonaro. Parte da população preferia a volta do PT, com seus acertos e seus erros, a dar poder a um ex-militar autoritário e tosco. Outra parte preferia tirar o PT, mesmo que em uma guinada radical à direita, que acabou prevalecendo.
O fato de as eleições terem terminado com um enorme gás da militância de esquerda e com a tendência de diminuição da diferença entre Haddad e Bolsonaro faz com que a derrota eleitoral não necessariamente venha a se transformar em derrota política. Por mais que os prenúncios sobre o governo Bolsonaro sejam tenebrosos, sua capacidade de impulsionar a agenda regressiva em relação a direitos civis e direitos sociais vai depender da capacidade de reação e das estratégias de organização da oposição, que vai se reunir em torno de diferentes polos.
No entanto, é preciso lembrar todos os dias que o maior líder político brasileiro das últimas décadas está preso arbitrariamente. Enquanto Lula não estiver livre, a democracia brasileira estará maculada. No dia em que eu encerrava este texto, o juiz Sérgio Moro, algoz de Lula, aceitava o convite para ser Ministro da Justiça de Bolsonaro, desvelando totalmente o caráter político da operação lava-jato. Dá vontade de seguir o textão, mas isso já é assunto da próxima temporada dessa série.