O que a Deep Seek ensina ao Lula Hacker?
A principal disputa do século 21 diz respeito aos meios que condicionam as mensagens, as tais plataformas, muitas delas megacorporações globais.
“Eu lembro da primeira reunião que fizemos na Granja do Torto, que eu não entendia nada da linguagem que esse pessoal discutia, e houve uma tensão imensa entre os que defendiam a adoção do software livre e aqueles que achavam que nós devíamos fazer a mesmice de sempre: comprar e pagar a inteligência dos outros. E graças a Deus prevaleceu em nosso país a decisão pelo software livre. Porque nós tínhamos que escolher, ou nós íamos para a cozinha preparar o prato que nós queríamos comer, com os temperos que queríamos colocar, e dar um gosto brasileiro na comida, ou íamos comer aquilo que a Microsoft queria vender para a gente. Prevaleceu, simplesmente, a ideia da liberdade.” (Luiz Inácio Lula da Silva, 2010, Fórum Internacional de Software Livre)
Duas semanas atrás escrevi um artigo propondo ao presidente Lula convocar os hackers brasileiros, ao menos aqueles comprometidos com a democracia, para desenvolvermos alternativas tecnológicas capazes de garantir a nossa soberania digital. Parece que o chamado ecoou no Palácio do Planalto, mas nenhum hacker foi visto por lá. As movimentações dos ministros e secretários estão mais centradas em respostas jurídicas e midiáticas, uma vez que demandam uma intervenção aparentemente mais urgente. Não resta dúvidas que é preciso agir nessas duas dimensões. Mas também não resta dúvidas que apenas isso não basta. Porque a principal disputa do século 21 diz respeito aos meios que condicionam as mensagens, as tais plataformas, muitas delas megacorporações globais. Uma prova eloquente disso que digo nos foi dada pela Deep Seek.
A essa altura, você já deve ter lido algo a respeito da nova ferramenta de inteligência artificial que abalou o Vale do Silício e, consequentemente, o resto do mundo. Passei a segunda-feira mergulhado em textos da mídia americana, especialmente os da Wired, entusiasmado com a novidade. Na mídia brasileira, vi vários artigos sobre o efeito que a Deep Seek teve nas bolsas de valores, derrubando ações de grandes empresas. Isso ocorreu por conta dos custos envolvidos na criação da ferramenta chinesa, muito inferiores aos que têm sido aplicados em soluções semelhantes produzidas nos Estados Unidos. Mas o mais interessante disso, para mim, para nós, é o fato de a Deep Seek ter conseguido esses resultados justamente por ser concebida baseada em valores da ética hacker.
Ok. Uma pausa. É o segundo texto que eu falo sobre hackers, cultura hacker, ética hacker. É bom que eu me explique. Aliás, que a Deep Seek explique, para vocês, sobre o que estou falando quando uso essa expressão em inglês baseada no verbo to hack (cortar abruptamente). Perguntei à ferramenta de I.A, que em termos de usabilidade é quase igual a outras até agora mais famosas, como o ChatGPT ou a Perplexity. A resposta da DeepThink R1 é longa, porque o tema é complexo. Mas por ora, nos basta este trecho:
“A Cultura Hacker é uma subcultura enraizada nos princípios da curiosidade, da especulação e de uma abordagem “mão na massa” da tecnologia. Enfatiza a criatividade, a colaboração e a livre partilha de conhecimento, desafiando muitas vezes a autoridade convencional e as restrições à livre circulação da informação.”
A cultura hacker se espraia, em grande medida, a partir do da Califórnia, nos Estados Unidos, mas a força da grana que ergue e destrói coisas belas parece tê-la sufocado por lá. E eis que ela ressurge através de uma empresa chinesa, a qual cresceu recrutando grandes talentos de seu país, jovens que se viram desafiados a desenvolver, com muito menos grana e com restrições tecnológicas impostas pelos Estados Unidos, uma solução em inteligência artificial melhor do que a de seus concorrentes.
Foi isso: eles tinham um problema, um grupo motivado, recursos financeiros finitos, sanções tecnológicas que lhes impediam de acessar os melhores chips e ousadia, muita ousadia. Voilá! Um golpe de judô chinês: a força do oponente usada para derrotá-lo. E o mais bacana de tudo, a DeepThink é open source, ou seja, é uma solução livre, que estimula a formação de uma comunidade de usuários e pode ser baixada e rodar em servidores próprios – os hacker brasileiros já a estavam testando ontem mesmo. Com isso, seguirá evoluindo não apenas a partir dos esforços concentrados de seus donos, mas por uma rede descentralizada de inteligências humanas e maquínicas. Isso faz diferença.
Aqui no Brasil, como disse no artigo anterior, fomos pioneiros na articulação da ética hacker com as políticas públicas. No início dos anos 2000, um imaginário baseado na ideia de uma cultura digital livre, impulsionada a partir de uma aliança público-comum, ganhou força em vários movimentos, os quais foram interrompidos na virada para os anos 2010. Nessa mesma época, as plataformas de redes sociais proprietárias começaram a dominar nossas comunicações e a colonizar nosso mercado interno, gerando em nossa sociedade uma enorme dependência cultural e econômica. A ponto de nos parecer impossível reverter esse quadro, mesmo diante da revelação explícita de que essas empresas atuam contra a nossa democracia, estimulando discurso de ódio e violências de todas as naturezas.
O que esse caso da Deep Seek pode nos ensinar? A nós, e ao presidente Lula, que um dia foi hacker também, como comprova o trecho que separei de seu discurso no Fórum Internacional de Software livre, década e meia atrás?
Ensina que: 1. tecnologias livres podem ser melhores e derrotar tecnologias proprietárias; 2. Não é apenas questão de dinheiro; 3. Inteligência, vontade política e articulação de condições internas podem mudar uma realidade que parecia imutável; 4. ao colocar uma nova ferramenta no mercado, se ela for boa, as pessoas desembarcam da anterior: o aplicativo da DeepSeek já foi mais baixado que o da Chat Gpt na loja virtual da Google; 5. é preciso ousar, subir o sarrafo, ir além das respostas fáceis, supostamente pragmáticas, de burocratas que fingem saber o que não sabem; 6. as principais tecnologias que temos hoje foram desenvolvidas com apoio público, estatal, e depois apropriadas pelo rentismo. Estados, portanto, têm poder de agência, não apenas regulatória;
Recentemente, passou por Brasília a economista Mariana Mazzucato, que advoga em defesa de um estado-empreendedor, o qual deve atuar para o fomento dos bens comuns. Não faltaram ministros para recebê-la e celebrá-la. Que tal agora aplicar as ideias dela numa iniciativa corajosa que pode servir de farol para o mundo? O caso da DeepSeek me leva a perguntar: não vale criar um programa público de desenvolvimento de alternativas tecnológicas, com ênfase na construção de soluções de mídias sociais, baseado em investimento nacional e internacional (não é o Brasil a bola da vez na gestão dos BRICs?). Asseguro que essa ideia está no ar e tem muita gente disposta a colocá-la em prática,