O pior palavrão do mundo
Se a maternidade compulsória é o destino quase que natural de toda a mulher, algo a ser questionado e combatido, para a mulher que vive de cobrar por sexo, o peso da maternidade é outro.
‘Mãe! Mãe! Eu sou o pior palavrão do mundo!’, diz Leila a Lourdes Barreto, em meio a nossa performance no Boteco da Diversidade. Filha de uma prostituta, Leila sabe bem do que fala: para ela e para milhões de crianças ao redor do mundo, através dos séculos, o estigma tem sido um velho conhecido.
Se a maternidade compulsória é o destino quase que natural de toda a mulher, algo a ser questionado e combatido, para a mulher que vive de cobrar por sexo, o peso da maternidade é outro.
Nossa prole, amaldiçoada e rejeitada pela sociedade, os filhos e filhas de prostitutas são crianças que desde cedo carregam nas costas a pesada mochila do preconceito – ainda que nos esforcemos para que dela se livrem.
A AMMAR (Associación de Mujeres Meretrices de Argentina) calcula que cerca de 86% das trabalhadoras sexuais cisgêneras argentinas são mães e principais responsáveis pelo sustento de suas famílias. No Brasil a cifra não deve ser muito diferente. Exercendo a atividade em segredo ou não, fato é que boa parte das pessoas envolvidas em trabalho sexual tem, como também tem as pessoas envolvidas em outras atividades, uma família com que se preocupar. Falas como as de Betânia Santos, presidenta da Associação Mulheres Guerreiras, do Jardim Itatinga (Campinas – SP), ajudam a compreender o lugar da maternidade na vida das prostitutas. Betânia muitas vezes se refere à filha mais velha como o primeiro presente que ganhou da prostituição, e o trabalho sexual como um meio seguro de sustentar sua família, através do qual parou de “precisar abortar” e finalmente pode garantir uma vida digna a si mesma e aos seus.
Sendo o meio prostitucional um meio fortemente conservador e influenciado por dogmas e crenças religiosas, a discussão sobre o aborto legal e seguro não tem avançado de modo firme entre as trabalhadoras sexuais brasileiras, mulheres orgulhosas de seu domínio sobre o corpo e fertilidade (ainda que às vezes este ‘domínio’ acabe por se mostrar falho). O assunto segue tabu.
Ainda que alguns grupos feministas acreditem estar sugerindo algo muito inteligente e avançado ao sugerir que a regulamentação do trabalho sexual somente fosse possível se aliada à legalização do aborto, este é um discurso que rapidamente mostra sua face eugenista e higienista. Uma prole rechaçada pela sociedade mainstream, não raro é protegida por suas progenitoras com a força de leoas. O direito à maternidade, ainda que não seja reivindicação feminista, acaba em certo sentido se tornando uma reivindicação informal de uma classe de mulheres mantida à margem: o direito à maternidade livre de preconceitos.
Falar sobre prostituição e maternidade é algo que sempre causa tensão.
O mito da mãe como uma mulher pura, livre de desejos e imune às tentações mundanas, é um dos mitos fundadores de nossa sociedade. A Virgem Maria, dando à luz a Jesus sem que tenha tido contato íntimo algum com José, zela por manter essa aura de pureza materna desde sempre. A prostituta, a mulher sem dono (mas dona e senhora de sua sexualidade), representaria o extremo oposto. A ideia de promiscuidade e degradação, facilmente associada a essa mulher, a mantém afastada do ideal de maternidade cultuado pela sociedade patriarcal contemporânea.
Essa exotificação da figura da prostituta e a fetichização de suas relações mais íntimas, como é o caso também da maternidade, nunca me caiu bem.
É certo que há lógicas vigentes no trabalho sexual e na vida das mulheres que o exercem que fogem da lógica convencional das vidas e das relações, mas nada de outro mundo, nada que nos torne verdadeiramente pessoas moralmente incapazes de zelar pelos nossos. Ainda assim, o fantasma da condenação moral nos assombra noite e dia, tornando ainda mais complexa essa função de cuidá-los, sustentá-los, educá-los evitando que o preconceito lhes cause danos irreversíveis. Sendo a vida dos filhos de putas tema fortemente presente no imaginário das pessoas que não cobram por sexo, o estigma de contato atinge a essas crianças de modo bastante violento, e isto é algo que precisa ser combatido – sob pena de acabarmos alimentando um ciclo de exclusão e opressões que, no fim das contas, é o que todas desejamos combater.