O novo mercado de shows criado pela Lei 14.133
Como a nova lei de licitações reposicionou as 5.570 prefeituras brasileiras como contratantes cobiçadas por artistas de todo o país,.
A nova lei de licitações trouxe uma seção específica sobre a inexigibilidade de licitação em razão da notória especialização e da inviabilidade de competição, com o artigo 74 consolidando as bases para a contratação direta de artistas. Ao mesmo tempo em que exige comprovação de exclusividade e de atuação profissional, a legislação trouxe segurança jurídica tanto para a administração quanto para os artistas. A contratação direta de artistas ganhou clareza legal, eliminando o medo de “tomadas de contas” futuras por parte dos gestores culturais, o que abriu caminho para maior confiança nas parcerias entre administração e agentes culturais.
Com os entendimentos pacificados pela nova lei, as prefeituras passaram a contar com diretrizes mais claras para contratar atrações artísticas (com modelos, pareceres e jurisprudência se multiplicando após 2021). Isso atraiu artistas e produtores, que antes evitavam contratos com o poder público por medo de atrasos, burocracias excessivas ou insegurança jurídica. Esse novo cenário encorajou também os próprios gestores municipais a investirem mais em programações culturais, cientes de que a lei agora os respalda de forma mais segura e transparente.
Uma das intenções da nova legislação foi justamente tornar o município um ente competitivo nas contratações diretas, corrigindo uma distorção que vigorava na era da Lei 8.666/93: artistas e empresários costumavam majorar os cachês para prefeituras, como forma de compensar os entraves burocráticos e os riscos percebidos nos contratos públicos. O que o legislador talvez não previsse é que, ao transformar os municípios em contratantes atrativos, os cachês aumentariam para todos os tipos de contratantes, puxados pela nova demanda e concorrência. Essa mudança de percepção elevou o nível da concorrência pelas agendas públicas e, como resultado natural da lei de mercado, aumentou os cachês em festivais públicos, festas juninas, carnaval ou eventos culturais menores.
Diante desse novo cenário, muitos produtores de grandes eventos e festivais privados, acostumados a liderar a disputa por artistas, passaram a enfrentar uma nova realidade: não conseguem mais competir financeiramente com as prefeituras, que agora dispõem de orçamentos robustos, procedimentos simplificados e segurança jurídica nas contratações. Em vez de insistirem na concorrência, muitos desses produtores perceberam uma oportunidade: passaram a figurar como intermediários nas contratações públicas, atuando como pontes entre os artistas e o poder público (o que também contribui para elevação dos cachês por conta de um novo intermediário, mesmo este estando expressamente proibido e não figurar nos contratos). Por já possuírem relações consolidadas com empresários e artistas, além de experiência em negociação e produção, conquistaram espaço como parceiros estratégicos das administrações municipais. Além disso, esses produtores vêm sendo cada vez mais contratados pelas próprias prefeituras para organizar festas públicas e programações culturais. Com isso, contribuíram para elevar o padrão técnico, organizacional e estético desses eventos, introduzindo práticas profissionais antes restritas ao setor privado.
Apesar dos avanços trazidos pela Lei 14.133, é necessário refletir sobre seus efeitos colaterais. Um deles é a tendência de concentração de recursos públicos em um grupo relativamente pequeno de artistas, cujos empresários já dominam os trâmites da contratação pública, possuem relações consolidadas com produtores e prefeituras, e atuam com estruturas jurídicas e logísticas robustas. Essa concentração tende a dificultar o acesso de artistas independentes ou emergentes, especialmente aqueles que ainda não possuem agentes com experiência em negociações com o setor público.
Outro ponto crítico é a exclusão simbólica de artistas com discursos mais críticos à política institucional ou com sonoridades consideradas “subversivas”. Grupos como Sepultura, Djonga, Racionais MCs, entre outros, frequentemente ficam de fora das agendas públicas, seja por questões ideológicas, seja por receios políticos por parte dos gestores. Como consequência, os shows desses artistas, por dependerem majoritariamente de patrocínio privado e bilheteria, tornam-se mais caros e restritos a um público economicamente mais privilegiado. A ausência de financiamento público colabora para elitizar o acesso à música crítica e à produção artística mais disruptiva, criando um desequilíbrio entre o que é acessível e o que é culturalmente provocador. Assim, se por um lado a nova lei democratizou o acesso dos municípios ao mercado artístico, por outro, gerou um novo tipo de assimetria que merece atenção e monitoramento por parte da sociedade e das políticas culturais.
Comparativo entre a Lei 8.666/93 e a Lei 14.133/21 nas contratações artísticas
Base legal para contratação direta
Lei 8.666/93: Art. 25, inciso III
Lei 14.133/21: Art. 74
Termo “notória especialização”
Lei 8.666/93: Genérico e de difícil comprovação
Lei 14.133/21: Melhor definido e contextualizado para o setor cultural
Requisitos para inexigibilidade
Lei 8.666/93 : Comprovação de exclusividade e notória especialização
Lei 14.133/21: Mantém exigência, mas com mais clareza e segurança jurídica
Pagamento antecipado a artistas
Lei 8.666/93 : Vedado
Lei 14.133/21: Permitido mediante justificativa e previsão contratual
Inclusão de transporte, hospedagem e alimentação
Lei 8.666/93 : Vedado expressamente em muitos pareceres jurídicos
Lei 14.133/21 : Permitido e previsto nas contratações artísticas
Documentação exigida
Lei 8.666/93 : Variável e frequentemente excessiva
Lei 14.133/21: Modelos padronizados e critérios objetivos
Visão sobre as prefeituras
Lei 8.666/93 : Contratantes pouco confiáveis
Lei 14.133/21: Contratantes competitivas e desejadas
Impacto nos cachês
Lei 8.666/93 : Majorados por risco e burocracia
Lei 14.133/21: Elevados pela concorrência e atratividade contratual
Uso de termos como carta de exclusividade
Lei 8.666/93 : Inconsistência na exigência e interpretação
Lei 14.133/21: Regulamentado com base em jurisprudência e práticas atuais
A Lei 14.133/2021 teve um impacto direto e, em muitos casos, positivo sobre o setor artístico-cultural. Longe de representar apenas uma reformulação burocrática, ela se mostrou uma ferramenta de valorização simbólica e financeira dos trabalhadores da cultura e uma adaptação às práticas do mercado. Hoje, prefeituras deixaram de ser “última opção” e passaram a figurar como contratantes de destaque no circuito artístico brasileiro. E isso, paradoxalmente, foi possível graças a uma lei que muitos ainda tratam como meramente administrativa. Contudo, os desafios permanecem. A concentração de cachês em poucos nomes e a exclusão de artistas mais críticos do circuito público exigem que gestores e produtores estejam atentos a critérios de diversidade, inclusão e pluralidade estética. Só assim a valorização proporcionada pela Lei 14.133 poderá realmente se refletir numa cena cultural mais democrática.
*Texto produzido com o auxílio de IA