“O Jiu-Jitsu é minha maior ferramenta de educação”, diz o campeão Helvecio Penna
“É de uma extrema covardia essa palavra meritocracia, no mundo em que a gente vive.”
Por Eduardo Sá e Paulo Branco Filho(*)
Considerado um grande mestre no meio do Jiu-Jitsu, o veterano Helvécio Penna é uma referência para além dos tatames. Apesar de sua carreira ter começado um pouco mais tarde que o normal, ganhou diversos títulos estaduais, nacionais e mundiais. Reconhecido pelo talento e capacidade física impecável, o atleta criou fama por disputar entre os mais jovens, mesmo com idade correspondente às categorias de cima.
Seu trabalho transpassa as áreas de luta. Aos 59 anos, diz que não tem por que esconder qualquer verdade mesmo em meio a um ambiente considerado conservador. Fala abertamente de política e sobre a necessidade de um diálogo em busca da democracia, na perspectiva de uma narrativa progressista frente a um cenário extremamente polarizado.
Na entrevista, ele fala sobre a tristeza ao ver o retorno de um estereótipo agressivo dos lutadores e de comportamentos inadequados aos princípios das artes marciais. Ressalta a importância da inclusão social através da luta, e da evolução profissional do Jiu-Jitsu no cenário nacional. De forma serena e com base em sua vasta experiência, a conversa é uma verdadeira aula aos jovens praticantes.
ES – O que te levou a ingressar nesse universo da luta? Conte sobre a sua trajetória.
Meu primeiro contato com a luta foi muito novo, tinha apenas cinco anos de idade. Sou asmático até hoje e minha mãe tinha que a natação e o judô me ajudariam nesse sentido. Então lutei até os meus 17 anos, quando o meu professor se suicidou e abandonei a luta por uns 10 anos. Nesse meio tempo fiz futebol de praia e triátlon durante muitos anos, inclusive durante o período da faculdade, sou formado em educação física pela UFRJ. Quando voltei a competir judô cheguei a ganhar uma seletiva nacional com vaga para a seleção. Depois, mais velho, cheguei a ser vice-campeão mundial máster e ganhei campeonatos internacionais. Passei a fazer Jiu-Jitsu para complementar como arte marcial e evoluir na luta de solo, e acabei me apaixonando e estou até hoje. Ganhei muitos campeonatos a nível internacional, tive resultados grandes, mesmo com 40 ou 50 anos. Subi no pódio do campeonato europeu que é uma das maiores competições.
Formado pela URFJ, dei aula também como professor do Estado durante aproximadamente quinze anos, mas o Jiu-Jitsu hoje é minha maior ferramenta de educação. É uma oportunidade de trabalhar com crianças, adolescentes e adultos, já participei de um projeto social muito interessante e alguns meninos estão até hoje fazendo aulas. Ajudo a formá-los professores e a passar valores. Fiz isso durante dez anos na Ladeira dos Tabajaras, favela em Copacabana, zona sul do Rio, num projeto chamado Energia Olímpica.
PB – De onde veio essa fama de “terror dos adultos”?
Comecei a competir Jiu-Jitsu com 43 anos e fui campeão internacional, então resolvi competir nos principais torneios do master. Ganhei muitas etapas e o próprio campeonato estadual de Jiu-Jitsu. Fui bicampeão do ranking da LERJJI, no Rio, duas vezes terceiro lugar no europeu, uma vez no World Black Belt. Mas minha forma já não é a mesma, desde os 52 anos comecei a decair por causa de artrose. Mas a fama veio dessa época, da minha luta com o Xande Ribeiro. Na Europa as pessoas me conheceram muito por causa da luta com um dos maiores lutadores de todos os tempos, que é o Rodrigo Cavaca. Eu perdi por pontos no final, mas lutando duro o tempo todo. Apesar de duas derrotas, talvez, foram as minhas duas melhores lutas no adulto, lutando contra os ícones da época.
PB – Seu mestre é reconhecido por ter um corpo franzino e ser extremamente pacífico, ao mesmo tempo em que é considerado um gênio do Jiu-Jitsu por suas criações. A figura do Delariva e todas as suas características contribuíram para quebrar estereótipos no mundo do Jiu-Jitsu?
Com certeza. Ele é um ícone do Jiu-Jitsu e uma pessoa que passa esses ensinamentos. Um cara da paz e seu trabalho é um dos mais refinados do mundo, sintetiza e personifica essa coisa do mais fraco poder lutar contra o mais forte, desde que ele use corretamente a técnica.
ES – Em relação ao mestre, essa coisa dos conceitos, valores e seus ensinamentos: por que há fundamentos filosóficos tão nobres por trás da luta, e ainda assim existe um estigma de violência em relação aos lutadores?
Os fundamentos filosóficos jamais pregariam qualquer tipo de violência, ou, principalmente, covardia. É uma arte eminentemente de defesa pessoal, principalmente o Jiu-Jitsu, mas que mal empregada é totalmente fora de qualquer conceito civilizatório. Abomino qualquer tipo de violência e acho que, infelizmente, a gente está perdendo o que levamos anos para ganhar retirando esse estereótipo de violência. Infelizmente, temos visto coisas que não coadunam com a filosofia do Jiu-Jitsu ou mesmo com o código Bushido dos samurais, que fala de lealdade, força, gentileza e uma séria de coisas incompatíveis ao comportamento violento.
ES – Essa questão do estereótipo de pessoa brigona, de direita ou conservadora, reflete a maioria no meio das lutas? Como se dá esse diálogo nesse cenário extremamente polarizado?
Acho que é sim a maioria, mas nós também somos muitos contra isso. E somos resistência à volta desse estereótipo. Isso é algo que causa repulsa. Não aceito esse tipo de comportamento e quem coloca a arte marcial em favor de grupos, como se estivessem indo para uma batalha. Se fosse realmente uma forma de evitar ou combater isso, mas sem violência, tudo bem. Muitos amigos pensam assim como eu. A gente não aparece e fala tanto, alguns estão até acuados diante de tudo que está acontecendo, mas a gente não aceita isso. Nosso discurso é de paz, não é de ódio, acho que as pessoas têm que ter um entendimento. Se você tem a opinião diversa a de outra pessoa, o caminho tem que ser o diálogo e a democracia.
PB – O presidente antes de se eleger já expressava nas suas falas uma gama de preconceitos e uma visão excludente, o fato de ele ter sido eleito é de certa forma a demonstração de uma sociedade adoecida? Qual o sentimento diante disso?
É um misto de indignação e repulsa. A gente demorou muito a acordar e de repente tudo isso estava posto. Não votei e jamais votaria em alguém com um discurso como o que foi apresentado.
Por outro lado, talvez, ele tenha sido o candidato mais transparente que a gente já viu, pois mostrou ao que vinha e, infelizmente, algumas pessoas não conseguiram ver isso. Mas hoje, muitas estão vendo. Não coaduno com ele em ideologia, nem em nada. Então, o que a gente vê é que existe um problema muito sério com a indústria cultural. Ela tem um lado muito bom, mas quando apresenta esse lado ruim manipula a mente das pessoas, principalmente, pelas redes sociais. Nesse ponto entristece, porque não é o mundo que quero pra mim, meus filhos e futuramente aos meus netos. Não queremos nada de ódio, primamos muito mais pela paz, o amor, comunhão pela natureza e o universo. Estamos indo para um caminho muito errado, mas a gente tem que lutar e ser resistência. Nunca fui muito de falar sobre política, para mim era subir a comunidade aqui perto junto das crianças e passar uma visão de mundo de paz, amor e harmonia. Colocar nas mãos deles ferramentas de valores, possibilidades de lutar contra esse estado de coisas que a gente vive. Isso até me emociona, porque conheço de perto essa realidade e é realmente muito triste.
ES – Recentemente, lutadores se manifestaram antagonizando aos atos antifascistas. No último domingo (7), inclusive, marcaram um ato no mesmo dia em que houve uma grande manifestação contra o racismo. Como ver o nome da luta associado a isso?
Infelizmente, esse tipo de postura não agrega nada à imagem do nosso esporte. E muita gente não coaduna com isso, não aceita esse tipo de expressão. É a expressão deles. Só que a gente leva uma bandeira do Jiu-Jitsu, então com esse tipo de exemplo, qual pai e mãe vão querer matricular os filhos nas nossas aulas? Somente aqueles que concordarem com isso. E, sinceramente, eu evito no grupo dos meus alunos falar de política. Tem gente que pensa de um jeito e gente que pensa de outro e, infelizmente, esse tipo de situação, ultimamente, está gerando um grau de violência não só física, mas também nas palavras. De certa forma isso acaba não agregando coisas boas. Espero que isso não venha a manchar tanto quanto parece que já está manchando a imagem de um esporte que deveria primar pela paz.
PB – A estrutura da luta escora-se muito no discurso da meritocracia, mas quem convive com estratos sociais distintos percebe que as portas e os meios não são iguais. Dê sua opinião sobre, correlacionando com a estrutura social.
Essa é a palavra que mais abomino no mundo de hoje: meritocracia. Vem carregada de um preconceito extremo, jamais pode ser usada se os direitos não são os mesmos. E o que a gente vê, infelizmente, são algumas pessoas que vieram de camadas mais pobres da população que quando ascendem, minimamente, esquecem disso.
Não estou generalizando, existem muitos que não, que lutam pela coisa certa, pela oportunidade para quem não consegue. Estes que esquecem acabam colaborando com aqueles que fazem permanecer esse estado de coisas. Todo o acesso que tivemos com políticas de cotas, as possibilidades de, talvez, algum dia essas injustiças ser reparadas, está sofrendo um retrocesso tremendo. Vejo as crianças carentes, muitas vezes, sem ter o que fazer; na rua, entregues à própria sorte. Então, é de uma extrema covardia essa palavra meritocracia no mundo em que a gente vive. São crianças, que poderiam e têm sonhos, mas que, infelizmente, vivem num mundo de violência, desrespeito. É uma covardia o que fazem com as crianças do nosso país. Ninguém pode achar que essa palavra possa ter qualquer representatividade no mundo de hoje. Meritocracia esquece que existem direitos, que não estão sendo preservados há muito tempo. E isso é a história do nosso país, que infelizmente não vem de hoje. Triste.
ES – Antigas gerações contam que, no passado, quem não tinha condições de comprar um Kimono ia para a Luta-Livre. O falecido mestre Carlson Gracie mudou um pouco esse panorama, abrigando muitos que não tinham condições. Ainda há elitismo no Jiu-Jitsu?
O mestre Carlson Gracie é um exemplo de ser humano e humanidade. É o precursor de todos os projetos sociais que incluem crianças em situação de risco, e vou render sempre todas as homenagens a ele. Sou uma pessoa que procura sempre estar conseguindo quimono para as crianças de projetos sociais. Meu aluno Yago Costa é um menino que entrega compras no supermercado Mundial, a esposa dele faz uns salgadinhos, moram num local chamado Estradinha, no morro dos Cabritos, e é um exemplo junto ao mestre Johnson, da Luta Livre. Eles ministram aulas lá na laje dele e eu ajudo com kimonos quando possível.
Pretendo voltar ao Tabajaras, onde fiquei algum tempo dando aula, inclusive um período sem ganhar qualquer coisa e muitas vezes investia o valor recebido em inscrições e outras ajudas. Minha intenção é só ajudar. A questão dos quimonos realmente faz muita diferença. O mestre Ari Galo, que é da Carlson Gracie, dá esse exemplo, deu vários para o Yago dar continuidade ao projeto. Temos pessoas no Jiu-Jitsu que têm essa consciência de ajudar e fazer com que essa ferramenta possa ser um processo de inclusão.
PB – Você acha que a influência do mercado retira ou desvia a luta dos preceitos filosóficos?
Depende. São lutadores que se preparam para estar ali naquele momento. Sim e não, também porque é uma indústria cultural.
Depende muito do lutador, de quem o comande, da forma com ele se expresse sua visão de mundo e crenças. Infelizmente temos visto, às vezes, alguns maus exemplos, mas jamais vou generalizar, pois sei que tem muita gente boa evolvida nisso aí.
Tenho amigos que lutam para ganhar o pão, e há também inclusão social através do MMA. A violência está na cabeça das pessoas e, infelizmente, mais ainda na cabeça daqueles que propagam isso. E, principalmente, na dos mestres: sempre acreditei que os alunos podem ser o espelho do que os mestres passam para eles. Quando falo de mestres, vejo a maioria com bons exemplos. Apenas uma minoria não tem passado a filosofia.
(ES) – Por você ser uma figura muito respeitada, acha que muitos possam rever seus conceitos através das suas opiniões? Fazer críticas ao atual governo, por exemplo, que tem muitos eleitores no seu meio, pode lhe prejudicar profissionalmente?
Não me preocupo com isso. Tenho que estar de acordo com a minha consciência. Com certeza surgirão críticos, mas também pessoas que pensam como eu. Sei que estou me expondo, e não tem problema com relação a isso. Não vou fugir aos 59 anos da verdade e do mundo pelo qual luto. Como dormir com a consciência tranquila e achar que está tudo bem? Me manter tranquilo, sem me expor, sem falar naquilo que eu acredito? Aos que quiserem continuar sendo meus amigos, continuarei sendo e não tenho nenhum problema com quem pense diferente de mim. Gostaria muito de poder debater num nível bom, coisa que eu não tenho visto. Mas o mais importante é respeitar as pessoas, porque eu procuro separar e respeitá-las pelo Jiu-Jitsu. Mas, como mestre, não posso coadunar com alguém que pregue a violência, ou que venha a público mostrar esse lado. Comigo não vai funcionar. O que penso não é vergonha, muito pelo contrário, é pensar no próximo, ver que você não está sozinho nesse mundo. E se a questão é interpretação e acham que os atos desse governo têm sido a favor da população, do povo, ótimo. Mantenham seus pontos de vista. Eu discordo diametralmente.
ES – Como está o Jiu-Jitsu no cenário profissional, evoluiu muito?
Evoluiu muito. Temos vários representantes no MMA, mas o Jiu-Jitsu ainda está distante de ser profissional. Alguns encontram, no mercado do MMA, a possibilidade de ascender e, muitas vezes, incluir pessoas que vêm dessas camadas sociais com maior dificuldade. Espero que jamais acreditem que todos vão conseguir da mesma forma, e nunca se esqueçam de que as injustiças só serão reparadas através de políticas públicas de inclusão. Você tem que ascender e ser multiplicador dessa ascensão. Se não for, não está contribuindo com um mundo melhor. Mas acredito que muitos vêm para multiplicar essa verdade e essa possibilidade. Que seja através do MMA, do Jiu-Jitsu, das artes, da ciência, da cultura, nas suas mais diversas formas, desde que voltadas para o bem das pessoas e não para o “emburrecimento” e manipulação da mente. Muito ao contrário do que dizem quando associam as universidades à manipulação.
ES – Cite uma figura, um livro, filme, qualquer referência, que contribuiu para o seu posicionamento político.
O filme Uma Noite de Doze Anos, sobre o ex-presidente [José] Mujica, do Uruguai. Não sou um cara tão culto, que tenha tanto conhecimento para falar. O que eu tenho é sentimento, e de sobra.
Odeio injustiça, sonho com um mundo muito melhor, com pessoas se importando com pessoas, com a possibilidade de todos terem acesso à educação, saúde, moradia digna. Enquanto não tiver dignidade na vida das famílias brasileiras, a gente não pode ter um mundo tão legal assim. E não é só o Brasil, é o mundo todo. Em alguns países já existe mais respeito em relação ao ser humano e aos direitos humanos.
Fotos: Arquivo pessoal do entrevistado
(*) Eduardo Sá é jornalista e Paulo Branco Filho é professor de artes marciais e cronista