Por Humberto Ribeiro e Flora Santana*

Aprovado em abril de 2014, o Marco Civil da Internet estabelece os princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil. Após dez anos de sua vigência, a norma protagoniza uma das discussões mais relevantes da atualidade, não só no Brasil mas em todo o mundo, no que tange à responsabilização das plataformas como redes sociais, motores de busca, websites, dentre outros, por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros e veiculados pelos respectivos provedores.

Esse debate tem sua origem no artigo 19 desta legislação que determinou a necessidade prévia e específica do descumprimento de ordem judicial para a responsabilização civil dos provedores. Isso significa que o usuário considerado lesado em razão de um conteúdo danoso publicado deve buscar a reparação junto ao indivíduo que publicou o respectivo conteúdo, e não junto à empresa de tecnologia que veiculou o material. Ou seja, somente nos casos de descumprimento de ordem judicial para remoção do conteúdo é que as empresas de tecnologia poderão ser responsabilizadas. 

Naquele momento, esse dispositivo foi criado com o objetivo de garantir a liberdade de expressão e impedir a censura, uma vez que o legislador reconheceu nos provedores o papel de meros intermediários, ao oferecer seus serviços a qualquer usuário, sem exigir autorização prévia para uso ou publicação do conteúdo.

Ocorre que todo o ecossistema de comunicação sofreu profundas transformações com o surgimento das plataformas, e o modelo de negócios dos provedores de aplicações mudou radicalmente na última década. Hoje, diferentemente do que ocorria quando o Marco Civil da Internet foi sancionado, em 2014, as redes sociais, por exemplo, deixaram de ser apenas mera hospedeiras de conteúdo distribuído de forma orgânica e se tornaram agências de publicidade de alcance global, que possuem mecanismos próprios para a distribuição de conteúdo e cuja a principal fonte de receita provém de anúncios pagos.

Entre os principais mecanismos estão a publicidade e a curadoria de conteúdo. Em ambos os casos, a plataforma otimiza a exibição do material utilizando dados e preferências pessoais dos usuários para apresentar conteúdos que sejam mais relevantes para a audiência. A diferença entre publicidade e curadoria reside no fato de que, na publicidade, a otimização ocorre em troca de uma contraprestação financeira recebida pela plataforma. Na curadoria, a exibição do conteúdo é aperfeiçoada por meio de algoritmos visando reter a atenção do usuário, prolongando seu tempo de navegação. Essa lógica implica que quanto mais tempo o usuário permanece online, mais inserções publicitárias são exibidas, permitindo à empresa acessar uma quantidade maior de dados pessoais e informações sobre seus interesses.

Hoje, portanto, não se pode confundir a atividade meramente intermediária das plataformas – oferecer espaço para publicação de conteúdo – com atividades próprias dessas empresas como a venda de publicidade e a recomendação ou curadoria de conteúdo.

Diante disso, o legislador previu, de forma acertada, no artigo 3º, inciso VI, do Marco Civil da Internet, que as plataformas devem ser responsabilizadas com base em suas próprias atividades, conforme os termos estabelecidos pela lei. Ou seja, em se tratando de conteúdos que foram objeto de publicidade ou recomendação, as plataformas podem e devem ser responsabilizadas não pelo conteúdo reputado ilícito em si, mas por sua participação no dano causado pela disseminação desse material. Isso se deve à sua atividade de otimização do conteúdo por meio de práticas publicitárias ou recomendações.

Em outros países e regiões onde vigoram regimes de responsabilidade semelhante ao artigo 19 do Marco Civil da Internet, a justiça já entendeu que a proteção legal de que gozam as plataformas não pode ser estendida para conteúdos de natureza publicitária ou recomendada. Em 2019, o Tribunal de Justiça Europeu entendeu que a imunidade conferida pelo artigo 14 da Diretiva 2000/CE não poderia ser interpretada de modo a proteger provedores que vendem espaços publicitários para inserções ilícitas. Do mesmo modo, em 2024, a corte federal de apelação do 3º circuito nos Estados Unidos afastou a aplicação da seção 230 do CDA e condenou o TikTok a indenizar a família de uma criança que morreu após participar de um desafio que foi sistematicamente exibido para ela através da aba “for you” que apresenta aos usuários conteúdos recomendados pela plataforma.

No próximo dia 27 de novembro, o Supremo Tribunal Federal examinará a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet. Assim, caberá ao Supremo Tribunal Federal estabelecer, ainda neste mês, a melhor interpretação possível para a aplicação do art. 19 do Marco Civil da Internet no Brasil, protegendo, ao mesmo tempo, os direitos fundamentais à liberdade de expressão e à reparação dos danos que forem causados em decorrência de atos próprios das empresas de tecnologia.

Uma vez que a natureza do artigo 19 é a proteção de conteúdos de natureza orgânica, isto é, aqueles simplesmente publicados pelo usuário e que não tenham sido objeto de otimização de qualquer natureza, nosso entendimento é que o artigo 19 é perfeitamente constitucional. 

O Sleeping Giants Brasil, assim, acredita que o Supremo Tribunal Federal está diante de uma grande oportunidade de estabelecer a melhor interpretação possível para a aplicação do artigo 19 do Marco Civil da Internet no Brasil, protegendo, ao mesmo tempo, os direitos fundamentais à liberdade de expressão e à reparação dos danos que forem causados em decorrência de atos próprios das empresas de tecnologia.

Humberto Ribeiro é advogado, cofundador e diretor jurídico e de pesquisa do Sleeping Giants Brasil 

Flora Santana é jornalista e consultora em direito e tecnologias da comunicação.