O ícone de uma Justiça injusta e racista, por Jean Wyllys
Entender o “caso Rafael Braga” é fundamental para compreender como funciona o sistema penal quando o “réu” é pobre e, principalmente, quando pobre e negro.
Caros leitores e seguidores de nosso novo espaço de interlocução, a história que tenho para lhes contar sintetiza muito bem como o sistema penal do nosso país e, ao fim e ao cabo, também de todos os países latino-americanos e mesmo dos EUA é visceralmente seletivo, racista e classista. Entender o “caso Rafael Braga” — que é a história à qual me refiro — é fundamental para que compreendamos como funciona o sistema penal quando o “réu” é pobre e, principalmente, quando pobre e negro.
1º CASO: PORTE DE EXPLOSIVOS
Jovem, negro, pobre, catador de latinhas e morador da Vila Cruzeiro, uma favela do Rio de Janeiro, Rafael Braga foi o único condenado no contexto das manifestações de 2013 — mesmo sem ter participado delas — por portar duas garrafas plásticas de produtos de limpeza.
Isso mesmo: uma pessoa foi jogada numa jaula insalubre por porte de material de limpeza sob argumento de que, na verdade, se tratavam de material explosivo. Feita a perícia nas garrafas apreendidas, constatou-se que não se tratava de material com potencial explosivo. Ou seja, o motivo pelo qual Rafael foi preso simplesmente não existia.
Contra todas as provas e todas as evidências e até mesmo contra toda dedução lógica, Rafael foi condenado por porte de materiais de limpeza.
Enquanto cumpria pena, Rafael acabou progredindo de regime para o semi-aberto (durante o dia, saía da prisão para trabalhar). Voltando para prisão depois de ter passado todo o dia trabalhando, Rafael deixou-se fotografar ao lado de uma pichação que dizia: “Você só olha da esquerda p/ direita, o Estado te esmaga de cima p/ baixo!!!”. Mesmo sem ter sido o autor da fotografia, mesmo sem ter divulgado a foto em nenhum espaço, mesmo sem ter compartilhado a foto, Rafael foi punido com torturantes 10 dias na cela solitária, que todos sabemos como é. 10 dias na solitária, entre os quais o dia da consciência negra. Não há coincidência nisso. Esse episódio acaba com qualquer dúvida, se é que restava alguma, do caráter de perseguição da prisão de Rafael. A foto que levou à aplicação do castigo (podemos, sem medo de errar, chamar de tortura) foi a seguinte:
2º CASO: TRÁFICO DE DROGAS
Em janeiro deste ano, já cumprindo pena em regime domiciliar (sendo monitorado por tornozeleira eletrônica), Rafael estava a caminho da padaria na favela onde morava, quando foi novamente preso a partir de um flagrante forjado, de acordo com testemunhas, e acusado de associação e tráfico de drogas, mesmo estando sob vigilância constante. A quantidade de drogas (“plantadas” no Rafael, segundo testemunhas) era ínfima: 0,6 grama de maconha (suficiente pra fazer metade de um cigarro) e 9,3g de cocaína.
Na calada da noite, às vésperas do feriado de 21 de abril, Rafael foi condenado a 11 anos de prisão.
A série de absurdos do caso de Rafael não param por aí: o juiz que o condenou levou em consideração apenas os depoimentos contraditórios dos policiais que o prenderam. Além disso, foi negado a ele o direito à ampla defesa: o juiz negou o pedido de acesso à câmera da viatura policial que o levou à delegacia e ao GPS da tornozeleira, além de ter ignorado o depoimento de uma testemunha que presenciou o momento da prisão e declarou que Rafael fora agredido pelos policiais e levado para um lugar longe da visão de todos — essas provas poderiam ter mudado o rumo do julgamento e comprovado sua inocência.
Sublinho um ponto assustador de cada fase dessa história: Rafael não teve direito de defesa em nenhum momento. As provas apresentadas foram (estão sendo) solenemente ignoradas ou tiveram sua produção negada pelo Judiciário.
Para que fique claro: no Brasil há um encarceramento em massa de jovens negros e pobres, numa gestão da pobreza através do sistema penal.
Ser negro e pobre transformou Rafael e transforma tantos outros jovens em “público-alvo preferencial” do sistema penal. É o que mostram os dados. Mais de 60% dos presos no Brasil são negros ou pardos e por volta da metade tem menos de 30 anos. Mais de 40% são presos sem condenação, provisórios, e pelo menos 1 de cada 4 está na cadeia por infração à lei de drogas, principal método de controle social da pobreza através do sistema penal.
Com mais de 620 mil presos, o país tem a quarta maior população carcerária do mundo, superada apenas por EUA, Rússia e China, mas nossas prisões têm capacidade para apenas 370 mil presos. O sistema está colapsado e a população carcerária aumentou 450% nos últimos 20 anos.
Contra estes fatos e dados não há “argumentos” de racistas e punitivistas que sobrevivam!