O golpe, o moralismo falso e a pós-democracia no Brasil
A superação da crise não se fará sem que a compreendamos. E sem que tenhamos reservas de coragem e de esperança para uma luta sem tréguas.
É amplamente consensual que o argumento da luta contra a corrupção desempenhou vasto papel na retórica do golpe parlamentar que apeou da Presidência a primeira mulher eleita presidenta do Brasil. Os deputados que protagonizaram a sessão grotesca presidida pelo corrupto notório e (pelo que se informa) réu confesso Eduardo Cunha prestigiaram o combate à corrupção como motivação para seus votos, ao lado, é claro, da homenagem a seus familiares e animais domésticos.
A insustentabilidade deste argumento já foi, a seu tempo, demonstrada: a denúncia da corrupção encobria a inexistência de crime de responsabilidade como fundamento constitucional do impeachment. A história também já desmascarou a hipocrisia daquelas jeremiadas; os parágonos da moralidade que foram invocados (o marido desta, o pai daquele…) foram todos recolhidos à cadeia por serem réus (pasmem!) de crime de corrupção no exercício de funções administrativas.
O debate desta tragédia trouxe a conhecimento mais geral as reflexões do jurista Pedro Serrano sobre a tese do “combate ao inimigo” como fundamento para a desconstituição do Estado de Direito nas democracias ocidentais. O combate aos judeus autorizou os horrores do nazismo; o combate ao terrorismo internacional autorizou Obama a determinar o assassinato de Bin Laden. Aqui no Brasil, a “guerra à corrupção” autoriza essa baderna institucional inaugurada por um impeachment sem crime de responsabilidade.
É fato, para citar a Presidenta Dilma, que o fado tem sido cruel com os principais atores daquela farsa: Cunha preso e condenado; presos Geddel e Henrique Alves; Aécio escandalosamente desmascarado; Michel, abandonado pela “base”, no ponto de perder o que lhe rendeu a trairagem. Este acerto de contas com o destino, entretanto, não encerra o golpe e nem deve turvar nossa compreensão dele.
Um ponto, por exemplo, a considerar é o caráter sistêmico da “corrupção” como elemento definidor das gestões neoliberais em todo o mundo.
Antes que alguém venha aqui brandir Sérgio Buarque (mal compreendido…), Raimundo Faoro ou qualquer outro discurso que atribua ao patrimonialismo ibero-brasileiro a origem e o remate de nossos males, convido à leitura de texto de 2015, de Colin Crouch, vice-presidente da British Academy para a área de Ciências Socias, sobre os paradoxos da privatização e da terceirização dos serviços públicos.
Neste texto Crouch se debruça sobre as relações incestuosas entre Estado e grandes corporações… na Inglaterra! Ao contrário do que previa a doutrina liberal em sua versão (digamos) romântica, a privatização e a terceirização das últimas três décadas não só não ampliaram opções na oferta dos serviços (pelo contrário, surgiram formidáveis oligopólios privados), como trouxeram, em contrapartida, aumentos de seus preços e deterioração de sua qualidade.
Para explicar esta contradição de expectativas, Crouch postula o modelo da porta giratória! Quem participava, pelo lado do Estado, da contratação, ou da regulação, dos produtos corporativos, torna-se, ao sair do serviço público, consultor ou executivo do setor privado. Por outro lado, os altos gestores das corporações privadas podem converter-se, a qualquer momento, em ministros de Estado, num alegre carrossel que só bloqueia mesmo os direitos de passagem da plebe rude.
Esta a razão para que hoje muitos estudiosos defendam o rótulo de neoliberalismo corporativo para a presente etapa do desenvolvimento econômico, por confirmar o “paradoxo” da forte dependência capitalista em relação à gestão estatal.
Não é, então, surpreendente que a esfera política se esvazie dos clássicos valores democráticos e passe, ao contrário, a instanciar a república como rito.
É essa triste situação que justifica as vitórias da direita nos países capitalistas centrais, quando as eleições combinam uma influência avassaladora do poder econômico com forte descrença do eleitorado nas formas tradicionais de representação. Transformado em trincheira dos plutocratas, o parlamento é, entre todos os poderes, o que mais se deslegitima e se desmancha.
Trago estas observações sobre o chamado Primeiro Mundo para que possamos colocar em perspectiva a nossa própria crise nacional.
Primeiro, é necessário que compreendamos a natureza da corrupção que devemos sem trégua combater: a depravação das fronteiras entre público e privado em muito excede a crítica moralista e é em termos políticos que ela deve ser revista.
Em outras palavras, é uma exigência democrática que se depurem as relações do setor público com as grandes corporações nacionais ou multinacionais. É inadiável, por exemplo, a introdução da quarentena para os agentes públicos em posição de direção em todos os poderes.
Em segundo lugar, necessário destacar que o neoliberalismo confronta diretamente a democracia. Introduzido como experiência de política econômica no Chile de Pinochet, sua difusão entre as democracias ocidentais foi levando a uma gradativa redução da necessidade de legitimação popular para as medidas governamentais adotadas. Uma espécie de aniquilação da política, substituída pela reivindicação acrítica do gerencialismo como fórmula mágica.
E é isso que está acontecendo agora mesmo no Brasil. Mesmo depois de comprovada a fraude do “choque de gestão” mineiro e desmascaradas as mentiras alardeadas por Aécio/Anastasia, espera-se de um Henrique Meirelles, “mago das finanças” em qualquer governo, que lidere no país a recuperação econômica… Que isso se faça às expensas dos direitos dos pobres e dos frágeis e enfrentando contra si uma fortíssima mobilização popular está dentro do receituário: dane-se o povo!
Por isso, as reiterações de desprezo à opinião pública (seja a Comissão de Ética enterrar a representação contra Aécio Neves, seja a persistência de Temer na presidência da república) escapam da mais fácil classificação de cretinice da “classe política”. Trata-se, na verdade, de manifestações programáticas da pós-democracia compatível com a ofensiva neoliberal.
A superação da crise não se fará sem que a compreendamos. E sem que tenhamos reservas de coragem e de esperança para uma luta sem tréguas.
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Arte da capa: Selos Comemorativos de 1 Ano do Golpe por João Faissal