Maria do Rosário: O golpe dentro do golpe
A substituição do presidente ilegítimo por Rodrigo Maia, ou qualquer outro indicado pelo Congresso Nacional, seria o golpe dentro golpe, significaria mudar para manter tudo como está.
O cenário político muda a cada instante, mas a despeito da avalanche de informações é preciso que não esqueçamos que o golpe foi alicerçado em torno de um programa, que Temer foi alçado ao poder e se sustentou até o momento em função de uma agenda nítida. Cientes disso, percebemos que, para além daqueles que não querem arcar com seu desgaste, o peemedebista pode ser descartado pelas mãos da elite monetária e da mídia oligopolista, que lhe entregaram a faixa presidencial, mas já não veem nele condição de cumprir as metas de interesse do mercado.
O que está em jogo é a concepção de Estado daqueles que, discípulos da nova onda neoliberal, demonstram sua total falta de apreço pela democracia e buscam destruir os fundamentos jurídicos basilares da Constituição de 1988. Nunca se tratou exclusivamente de afastar a presidenta Dilma do cargo para o qual foi eleita, mas de substituir um projeto de desenvolvimento nacional centrado no Estado e no enfrentamento às desigualdades por um calcado nos interesses privatistas.
Buscava-se realizar uma Reforma Trabalhista que passasse a autorizar o poder econômico a determinar o grau de exploração da mão de obra; uma Reforma da Previdência que na prática rouba o direito à aposentadoria e o acesso a benefícios vitais para os setores mais vulneráveis da sociedade; bem como a entrega do patrimônio nacional. Pontos registrados no texto “Uma Ponte para o Futuro”, elaborado pelo mesmo PMDB que nos arremessou ao abismo.
Por meio de um discurso de que as políticas universais e às voltadas aos mais pobres representam um atraso para o Brasil, buscaram convencer a população da falácia de que em termos econômicos não há escolhas, que é preciso que os trabalhadores paguem a conta da crise do capitalismo internacional por meio da flexibilização dos seus direitos, do corte de investimentos em programas sociais e de um ajuste fiscal recessivo.
Trilhando este caminho converteriam o décimo país mais desigual do mundo, na nação do apartheid social. Na exata medida para os que buscam o lucro e a obtenção de privilégios acima de tudo e de todos, para os quais mais vale a existência de um amplo exército de reserva que permita a redução do custo com a mão de obra, a exploração sem limites diante do fantasma do desemprego, do que um país de todos que Lula buscou construir em seus governos.
Em um momento de crise, no qual a conciliação já não era mais possível, a elite brasileira resolveu não correr o risco de perder parte de seus lucros ultrajantes, assim alçou ao poder o setor da política que se prestaria ao papel de promover reformas que fizessem com que a população mais pobre voltasse a só poder ter acesso a um ensino fragmentado, acrítico, orientado exclusivamente ao mercado de trabalho, que lhes fecharia as portas da universidade. O que, por sua vez, contribuiria para que estes viessem a ocupar postos de trabalho precários e exaustivos durante décadas para que, só aí, com a saúde deteriorada, sem acesso a um sistema universal que os amparasse, pudessem ter direito à aposentadoria. Isso se sobrevivessem, após uma vida de longas jornadas de trabalho e baixos salários.
Em pouco mais de um ano parte dos instrumentos necessários para construir esse país da exclusão foram colocados em prática. Precarização do Ensino Médio público; congelamento por 20 anos de investimentos em área vitais como saúde, educação e assistência social; e a entrega do Pré-Sal. Está em curso ainda a destruição da proteção ao trabalho consolidada no Brasil desde a década de 1940, bem como várias outras medidas como uma restruturação criminosa do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e o fechamento das Farmácias Populares.
Diante de nossos olhos se expõe um país que até o fim do ano pode devolver para a pobreza entre 2,5 milhões e 3,6 milhões de pessoas, e que corre o risco de retroceder em uma de suas principais conquistas históricas, o fim da fome.
Olhando para o estrago feito em tão pouco tempo é possível argumentar que Temer, com toda a sua subserviência, seguiu a cartilha neoliberal como poucos e implementou medidas impopulares que receberiam congratulações de Thatcher e Reagan, Milton Friedman e Friedrich Hayek, mas essa é apenas uma tarde da história, pois tal como diziam os que resistiram ao golpe: teve luta!
Manifestantes ocuparam as ruas do país, mostraram sua força com as mulheres, com a juventude nas ocupações das escolas, com a resistência no campo e nos movimentos pelo direito à moradia e promoveram uma histórica greve geral. Foi dessa forma que conseguiram frear a tramitação da Reforma da Previdência e atar as mãos de um Governo cuja base no Congresso Nacional se esfacela enquanto seu apoio popular chega quase à zero.
Diante deste quadro, Temer fica cada dia mais distante da governabilidade que necessitaria para terminar o que iniciou, razão pela qual ao mesmo tempo em que gritamos “Fora Temer”, devemos dizer “Não ao Colégio Eleitoral” e “Diretas Já”. No momento em que um relator do seu partido apresenta um parecer pela continuidade das investigações e sustenta que: “os indícios de materialidade são suficientes. Não é fantasiosa a acusação, é o que temos e deve ser investigada”, reforçamos o que já dizíamos. O primeiro presidente da história brasileira denunciado por corrupção no exercício do cargo deve ser devidamente investigado, mas antes de tudo afastado do mais alto espaço de poder eletivo do país para que cesse sua possiblidade perpetração de crimes e a obstrução de justiça no Palácio do Planalto, ilícito pelo qual também é denunciado.
Contudo, para os trabalhadores e trabalhadoras, derrubar quem não serve mais aos interesses da elite patrimonialista e antidemocrática não é suficiente.
A substituição do presidente ilegítimo por Rodrigo Maia, ou qualquer outro indicado pelo Congresso Nacional, seria o golpe dentro golpe, significaria mudar para manter tudo como está.
É preciso devolver ao povo o direito de escolher o próximo presidente da República, este sim, com um programa que precisará enfrentar o crivo da opinião pública, e não mais o fruto dos subterrâneos da política que ignoram os anseios da população e viram de costas para o Brasil.