O feminicídio político e o epistemicídio
Será que o conceito de uma mulher, negra, cria da favela pode se tornar referência e contribuir para elaborações mais aprofundadas sobre o que vivemos todos os dias? Ou o epistemicídio seguirá matando ou anulando nosso conhecimento todos os dias?
A execução sumária de Marielle Franco se apresentou como o limite da barbárie enquanto instrumento político. Com o passar dos dias de luto e luta, fui encontrando também em leituras e na formulação de ideias um caminho pra seguir. Se tornou uma espécie de alento a construção de um pensamento crítico, político e teórico que fizesse algum sentido sobre uma das maiores dores que já senti: a perda de uma querida companheira de luta e de vida de maneira tão desumana. “Feminicídio político” foi a expressão que considerei mais adequada para sistematizar o possível resultado de um conjunto de violências políticas a ela destinadas. Mas, inevitavelmente, algumas perguntas me vieram à cabeça: Será que o conceito de uma mulher, negra, cria da favela pode se tornar referência e contribuir para elaborações mais aprofundadas sobre o que vivemos todos os dias? Ou o epistemicídio seguirá matando ou anulando nosso conhecimento todos os dias?
A ideia de reconhecer o assassinato de Marielle como “feminicídio” surgiu em um momento em que fazia a leitura do Dossiê Mulher de 2018, se não me engano, e vi uma alusão a Mari. Logo passei a utilizar “feminicídio político” em falas públicas para referenciar o que acabara de ocorrer acontecer com ela. Alguns companheiros relativizaram a formulação e questionaram o fato da expressão enfatizar o crime de ódio e esvaziar o seu caráter político. Ainda que compreendesse a ponderação, procurei organizar a formulação em termos sociológicos brasileiros. E publiquei artigos intitulados sobre o tema em jornais como O Globo e El País, e, ainda em 2019, apresentei um trabalho acadêmico internacional com o termo e, atualmente, me dedico ao pós-doutorado na UFF na fundamentação e sistematização teórica e intelectual do conceito.
A formulação leva em consideração os dados alarmantes de violência contra mulheres, em especial as negras e moradoras de favelas e periferias. Os corpos considerados matáveis. E nesse sentido as estatísticas são reveladoras. Em 10 anos, entre 2007 e 2017, de acordo com o IPEA, houve o aumento em cerca de 30% de feminicídio de mulheres negras e de 1% em mulheres não negras. Além do alarmante crescimento em mais de 300%, em 2018, da violência contra a mulher em decorrência de conflitos agrários e luta por justiça social, de acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra. Ou seja, Marielle, mulher, negra, LGBT, oriunda da favela se qualifica como um corpo matável no Brasil. E era justamente para a preservação da vida desses grupos que a vereadora dedicou o sua militância e sua política no parlamento.
No primeiro ano do feminicídio político da Mari, cheguei a fazer um desabafo público, durante a homenagem feita por sua família na Maré, sobre o quanto as pessoas omitiam essa formulação. Argumentava, inclusive, que o fato de a conceituação vir de uma pessoa como eu, trazia consigo a possibilidade de apagamento. Eis que, já no segundo ano da execução sumária da Mari, o termo é utilizado por várias pessoas, como por exemplo a apresentadora Fátima Bernades, e não há a preocupação de citar a minha autoria acadêmica e política da formulação. Um sinal evidente de epistemicídio: se não há o apagamento, há a apropriação.
O Epistemicídio é um conceito de Boaventura de Souza Santos, que classifica o não reconhecimento e/ou a destruição do conhecimento, saberes e cultura não assimilados pelo Ocidente branco. Quer dizer que a produção do conhecimento advindo de países negros não são reconhecidos pela hegemonia branca, colonizadora. Isso se reproduz materialmente nas academias desses países de maioria negra, mas que mantém uma tradição intelectual eurocêntrica e branca. Sendo assim, conceitos articulados por intelectuais negros são apagados, silenciados e/ou omitidos. Por isso, considero que há um epistemicídio quando não se reconhece e não é dado o devido crédito ao meu papel político, intelectual e acadêmico na formulação do conceito de “feminicídio político”.
Nos reconhecer enquanto sujeitas políticas, com toda dor e luta que isso representa, não nos permite silenciar diante do apagamento histórico. Eu estou deputada estadual, mas sou jornalista por formação e intelectual com doutorado na UFRJ. A produção de conhecimento preto, pobre e favelado caminha junto com a opção política de luta contra as desigualdades, em especial de gênero, raça e classe. É por Marielle, mas é por todas nós.