O direito à propriedade não é uma garantia absoluta da lei
Poucos sabem, mas a mesma Constituição que assegura a propriedade exige que ela cumpra a chamada “função social”.
O direito à propriedade não é uma garantia absoluta pela lei brasileira. A mesma Constituição que assegura a propriedade exige que ela cumpra a chamada “função social”. Uma área abandonada, esperando melhorias no entorno para valorização, ou então um edifício ocioso, por exemplo, não cumprem função social alguma. Portanto, estão em situação ilegal. Poucos sabem e os que sabem – como juízes e promotores – normalmente preferem ignorar a exigência da função social em suas decisões.
Assim, as liminares de reintegração de posse são dadas aos baldes nos fóruns deste país. É um despacho quase automático, que desconsidera a situação real da propriedade e a necessidade e motivações dos ocupantes.
Como se não bastasse, polícias e guardas civis resolvem ainda agir por conta própria, sem qualquer ordem judicial, executando despejos ao arrepio da lei. Há uma verdadeira escalada de despejos sem ordem judicial no Brasil, nos quais as forças do Estado agem como se fossem milícias.
No último sábado, dia 8, Guarulhos viveu cenas de guerra. Após uma ocupação organizada pelo MTST, já consolidada e com mais de 500 pessoas, o prefeito da cidade decidiu ordenar para que a guarda civil despejasse as famílias sem-teto. Sem qualquer ordem judicial em mãos, dezenas de guardas avançaram com cães e cacetetes, dispararam balas de borrachas e bombas. A operação deixou pelo menos vinte feridos, inclusive o advogado do movimento. Há nas redes um vídeo que mostra parte da barbárie a que essas famílias foram submetidas.
O caso é grave e ilustrativo do que vem ocorrendo pelo país, seja com guardas civis ou polícias militares. O absurdo ocorrido em Guarulhos carrega semelhanças com uma série de despejos recentes sofridos pelo MTST, em cidades como Itapecirica da Serra (SP), São Gonçalo (RJ), Porto Alegre (RS), Recife (PE), Maracanaú (CE), entre outras. Todos eles despejos sem ordem judicial, à margem da lei.
Deve-se desatacar o uso ostensivo e crescente das guardas civis municipais, quando não de milícias armadas – sejam forças paramilitares ou “jagunços” particulares de proprietários – para executar reintegrações de posse. A militarização das guardas civis é um fenômeno particularmente preocupante.
Em 2014, foi autorizado o porte de arma e o poder de polícia para a Guarda Civil Municipal, em lei sancionada por Dilma Rousseff. Foi mais uma brecha para o uso de violência contra a população mais pobre. Forças de segurança pública cada vez mais militarizadas, combinadas com o desmantelamento das políticas sociais, resultam num Estado que aparece apenas para bater, especialmente em quem ousa lutar.
Esta ausência de qualquer garantia legal é ainda reforçada pelos abusos praticados ou chancelados pelo Poder Judiciário, por uma mídia que estimula a violência contra os mais pobres e por uma ofensiva de desmoralização dos movimentos sociais. Quando o exemplo vem de cima e se traduz em caldo social, as arbitrariedades viram norma. O GCM de Guarulhos se sente um verdadeiro super-homem quando respaldado pelo governo, estimulado pelo Datena e aplaudido por uma legião de “cidadãos de bem”. É mais uma versão do que ocorre quando o AI-5 chega no guarda de trânsito.
No entanto, é uma vã ilusão acreditar que os problemas evaporam no ar com algumas cacetadas e doses de gás de pimenta. As famílias despejadas, em Guarulhos ou em qualquer outra parte, continuam sem conseguir pagar aluguel. Ocuparão novamente, não têm outra alternativa. Ao Estado, se continuar respondendo à margem da lei, restará a preocupação de que um dia o povo resolva seguir seu exemplo.