O Combate à fome e a obesidade nos BRICS
A desigualdade no acesso a dietas saudáveis talvez seja o maior desafio comum aos países do BRICS
Por José Graziano da Silva, diretor Instituto Fome Zero
A segurança alimentar e nutricional (SAN) é um desafio global, refletindo tanto o progresso quanto às desigualdades existentes em diferentes regiões. Entre os países iniciais dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e seus novos integrantes no BRICS+ (Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos), há diferenças significativa em termos de desenvolvimento econômico, recursos naturais e políticas públicas que afetam diretamente a segurança alimentar.
Uma análise dos dados da edição de 2024 do relatório “Estado da Segurança Alimentar e Nutricional” (SOFI 2024) mostra que os países do BRICS apresentam uma variação muito grande nos indicadores de segurança alimentar. Enquanto China e Rússia já não figuram no “mapa da fome mundial”, com taxas de subnutrição abaixo de 2,5%, a Índia enfrenta 13,7% de sua população nessa condição, uma das maiores entre os BRICS. No Brasil, a prevalência de subnutrição (medida pelo índice POU da FAO) é de 3,9%, relativamente baixa, mas a insegurança alimentar moderada ou grave (medido pelo índice FIES também da FAO) atinge 18,4% da população, um dado preocupante para uma das maiores potências agroalimentares do mundo.
O grupo BRICS+ amplificou a heterogeneidade observada no bloco original. Enquanto os Emirados Árabes Unidos registram apenas 10% de sua população em situação de insegurança alimentar moderada ou grave, na Etiópia esse índice alcança impressionantes 59%, um dos mais elevados do mundo. Essa disparidade reflete desafios estruturais, como conflitos, efeito das mudanças climáticas e das desigualdades econômicas, que afetam profundamente o acesso a alimentos nesses países.
Além disso, o sobrepeso e a obesidade emergem como questões alarmantes em alguns países do bloco. No Brasil, mais de 28% da população adulta sofre de obesidade, superando a média mundial que é de 15,8%. Na África do Sul, esse índice é ainda maior, com cerca de 31% da população adulta obesa. No contexto do BRICS+, o Egito lidera em obesidade adulta, com 44%, destacando o impacto das dietas baseadas em alimentos ultraprocessados e a falta de acesso a opções alimentares saudáveis para a maioria da população. Não seria exagero dizer que o bloco sofre uma verdadeira epidemia de obesidade por conta da má nutrição oferecida a sua população, especialmente aos mais pobres.
A desigualdade no acesso a dietas saudáveis talvez seja o maior desafio comum aos países do BRICS e do BRICS+. Enquanto na Rússia apenas 2% da população não pode pagar por uma dieta saudável, no Brasil esse índice chega a 25%, e na África do Sul, 60%. No BRICS+, a Etiópia e o Egito registram os maiores custos relativos para manter uma alimentação saudável, dificultando ainda mais a segurança nutricional nas regiões mais vulneráveis.
A cooperação Sul-Sul entre os países do BRICS tem se mostrado uma estratégia eficiente para enfrentar alguns dos desafios comuns. A troca de conhecimentos e novas tecnologias entre membros do bloco já resultou em avanços significativos em práticas agrícolas resilientes ao clima. A Índia, por exemplo, destaca-se na implementação de sistemas de irrigação movidos a energia solar, uma solução que reduz custos e impactos ambientais, ao mesmo tempo que aumenta a produtividade e a resiliência dos agricultores frente às mudanças climáticas. Na China, o uso da agricultura de precisão contribuiu para um aumento significativo da eficiência produtiva, reduzindo desperdícios e promovendo uma agricultura mais sustentável. Já na África do Sul, a integração de energias renováveis em sistemas agrícolas, como a dessalinização movida a energia solar para irrigação, destaca-se como um exemplo de inovação adaptativa em um cenário de escassez de água.
No entanto, a recente ampliação para o BRICS+ deverá exigir esforços adicionais para coordenar políticas e superar as diferenças internas do grupo.Assim por exemplo, o custo crescente das dietas saudáveis, agravado pelas mudanças climáticas e conflitos, exige uma atenção especial para melhorar a nutrição da população pobre e conter a epidemia de obesidade no bloco especialmente porque as políticas de combate a fome a má nutrição nao são ainda uma prioridade compartilhada entre os países do bloco.
A recente realização de uma reunião de ministros de agricultura e desenvolvimento rural do BRICS+, em Brasília, e a aprovação da Declaração Conjunta sobre Agricultura Sustentável e Segurança Alimentar prioriza o fortalecimento da agricultura familiar, o combate à fome e a facilitação do comércio agrícola, temas que, até recentemente, ocupavam espaço periférico nas negociações multilaterais do bloco. O Brasil, com sua longa trajetória na luta contra a fome e na defesa da agricultura familiar, conseguiu abrir um espaço para que esses assuntos fossem tratados de maneira integrada e abriu uma perspectiva de continuidade.
Foi acordado o fortalecimento de políticas públicas de apoio aos pequenos produtores, a formação de estoques reguladores a partir da produção familiar e o incentivo ao desenvolvimento de tecnologias agrícolas adaptadas às diferentes realidades locais. Essa aposta não é apenas econômica, mas também ambiental e social: a agricultura familiar é reconhecida como um pilar fundamental para garantir a segurança alimentar e promover práticas sustentáveis em larga escala.
Esses avanços são significativos. Mas, para que essa agenda se torne realmente prioridade permanente do bloco, é necessário criar mecanismos que garantam sua continuidade para além da presidência brasileira. A criação de um Grupo Permanente de Segurança Alimentar e Combate à Fome no âmbito dos BRICS+ surge, nesse contexto, como uma necessidade de ter um espaço institucionalizado, capaz de articular políticas, coordenar ações e assegurar que o combate à fome permaneça como prioridade nos próximos ciclos de liderança do bloco.
A experiência internacional mostra que temas transversais e urgentes como a segurança alimentar não podem ficar reféns da rotatividade das presidências. O Brasil abriu uma oportunidade valiosa, mas a institucionalização desse compromisso é o único caminho para garantir que ele sobreviva às mudanças de contexto político.
Em 2025, a Presidência brasileira dos BRICS precisa posicionar a segurança alimentar e nutricional como tema de especial atenção ao bloco. E na COP30, a ser realizada em novembro de 2025 no Brasil, os países do BRICS+ terão grande uma oportunidade de alinhar suas metas climáticas com as de segurança alimentar, além de defender maiores investimentos em práticas agrícolas sustentáveis e na mitigação das desigualdades sociais e econômicas.