
O Cavalo de Tróia dos minerais críticos: racismo, corrupção e genocídio climático
No Vale do Jequitinhonha, onde nasci e luto, os efeitos dessa farsa já são irreversíveis.
A agenda dos chamados “minerais críticos” tem sido vendida ao mundo como solução para a crise climática. Mas o que se esconde dentro desse discurso é um cavalo de Troia — um projeto de destruição disfarçado de salvação, que entra sorrateiramente pelo portão da transição energética para promover o velho e brutal extermínio dos mesmos de sempre: os povos racializados, empobrecidos e climaticamente vulneráveis.
No Vale do Jequitinhonha, onde nasci e luto, os efeitos dessa farsa já são irreversíveis. Com o pretexto de produzir o “lítio verde” que abastecerá os carros elétricos do Norte Global, o Estado brasileiro — por meio do BNDES e com recursos do Fundo Clima — financia um modelo de mineração que aprofunda a desertificação, contamina os rios, sequestra a água das comunidades e gera calor extremo sobre calor extremo. É isso que os documentos chamam de “economia dos minerais críticos”. Nós chamamos de genocídio climático.
Os achados do CLÍMAX 2025, consolidado em Relatório e Carta Climática do Jequitinhonha, revelam a extensão do desastre: são 3,6 milhões de litros de água desviados diariamente para a mineração enquanto famílias sobrevivem com menos de 20 litros por dia. O hospital regional de Araçuaí viu sua demanda explodir em mais de 30% desde o início das operações. O lítio, que prometia “futuro”, está custando vidas no presente. E o mais revoltante: tudo isso com dinheiro público, investido por gestores que escolheram a morte e com a bênção de uma mídia corporativa comprada pelo lobby mineral.
A verdade é que a mineração de minerais críticos não é sustentável, nem econômica, nem climática. Ela é profundamente hídrica, energointensiva, termogênica e emissora. Seus processos de extração e beneficiamento consomem energia em proporções absurdas, geram calor adicional em regiões já em colapso térmico e emitem gases de efeito estufa sem qualquer compensação.
A água, elemento essencial da vida, é transformada em lubrificante de uma cadeia de morte. E tudo isso se instala justamente onde os corpos são pretos, pobres e desprotegidos.
Do ponto de vista econômico, a farsa também ruiu: a bolha especulativa do lítio já estourou. De 80 mil dólares por tonelada em 2023, o preço caiu para 11 mil dólares em 2025 — uma perda de 85% do valor. A pergunta, então, é inevitável: que urgência econômica justifica essa devastação? A resposta é um silêncio cúmplice. Não há demanda, apenas ganância. O que existe é um consórcio de interesses extrativistas, políticos e financeiros que instrumentaliza o discurso da transição para aplicar uma velha lógica colonial com roupa de futuro.
Chamo isso de necrotransição energética — porque ela não busca salvar o planeta, mas sim salvar os lucros de uma elite global às custas da morte dos territórios periféricos. Não por acaso, são sempre os mesmos territórios, os mesmos corpos, os mesmos silêncios. E a cumplicidade da mídia, das agências reguladoras e de parte significativa dos gestores públicos é flagrante. Não se trata de erro. Trata-se de crime com planejamento e dolo, cuja motivação é política, econômica e racial.
Por isso, o CLÍMAX 2025 não foi apenas um encontro de resistência — foi a proclamação do fim da legitimidade moral e civilizatória da mineração como política de Estado. O Brasil não pode continuar sendo um exportador de lítio e um importador de tragédia. Se a narrativa oficial diz que “é preciso minerar para salvar o planeta”, nossa resposta, vinda da terra seca e dos corpos exaustos, é inequívoca: não haverá futuro se ele for construído sobre a nossa extinção.
O Cavalo de Troia dos minerais críticos nada mais é que a ferramenta para um fim específico: o genocídio climático mascarado de “transição energética”. Não dizemos isso como metáfora, mas como tipificação jurídica. As ações em curso no Jequitinhonha se enquadram perfeitamente no Artigo 6º(c) do Estatuto de Roma.
É um crime com dolo, um crime de Estado, que financia a destruição com dinheiro público e ignora todos os alertas. É um crime com um alvo específico, as comunidades negras, quilombolas e camponesas, porque o racismo ambiental sempre decidiu quais vidas são descartáveis. E é um crime cuja arma é a imposição de condições de existência insuportáveis — a sede, a fome e a doença — para forçar a nossa desaparição.
A verdadeira transição energética começa com o fim desta farsa. Ela exige a coragem de dizer que água vale mais que lítio, que vidas negras e indígenas importam mais que o lucro de acionistas anônimos, e que nenhum território será sacrificado em nome de um futuro que não nos inclui. A luta não é mais apenas por dignidade. É pela vida.