O Brasil que dói, mas que resiste
Não há o que comemorar, há o que reparar. Nossa democracia, jovem e frágil, foi violada, quase golpeada e assassinada.
Há um gesto que nossa gente conhece bem, um gesto ancestral e periférico. É o corpo que, após carregar um fardo por tempo demais, por fim, o deposita no chão. Não é um movimento de euforia, mas de um alívio profundo e silencioso. Um suspiro coletivo pairou no ar. Um suspiro profundo que vem das entranhas deste país, carregado de um alívio que quase dói. É esse o sentimento que invadiu o peito de milhões de brasileiras e brasileiros com a condenação de Jair Bolsonaro a 27 anos de prisão.
Para entender a profundidade desse alívio, é preciso fazer um retrospecto do que vivemos no último período. O Brasil atravessou anos sombrios. Sobre os nossos ombros pesaram dores demais: a fome de milhões, as mais de 700 mil vidas perdidas em uma pandemia que foi tratada com descaso, o desprezo às instituições democráticas, a violência como método político, a mentira como projeto de poder. Bolsonaro governou exaltando torturadores, debochando da dor alheia, tratando o povo como descartável e buscando submeter o país aos interesses de sua família, de milicianos e de um projeto de destruição coletiva.
A disputa eleitoral de 2022 não foi uma simples eleição, foi um campo de batalha pelo próprio significado de Brasil. De um lado, a política como projeto de morte. De outro, a frágil, mas teimosa, esperança. A vitória do presidente Lula significou, antes de tudo, a interrupção desse projeto de devastação completa. Foi o povo brasileiro, especialmente nós, das periferias, negros e negras, empobrecidos, dizendo um sonoro “basta!”. Foi a chance de reassumir o comando de um navio à deriva, de reconstruir em meio aos escombros um país que teve sua dignidade deteriorada pelo ódio e insanidade e que nos permitiu sonhar com um novo amanhecer.
Mas o veneno golpista ainda corria nas veias. O dia 8 de janeiro de 2023 escancarou a ferida: a tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, um pesadelo que se materializou no coração de Brasília. Foi o grito de dor de uma democracia que, como bem lembra a minha conterrânea, ministra Cármen Lúcia, ainda pulsa e nos dói. Ela definiu com precisão poética o que este julgamento representou: “O que há de inédito nessa ação penal é que nela pulsa o Brasil que me dói. A presente ação penal é quase um encontro do Brasil com seu passado, com seu presente e com seu futuro”.
Este veredicto histórico, que condena não apenas um homem, mas um projeto de destruição, é um ato de resistência coletiva. É a resposta institucional que não permite que intentos golpistas avancem; é o judiciário, na figura corajosa de seus ministros e ministra, assumindo o seu papel; é a prova de que, apesar de tudo, a democracia ainda respira porque o povo brasileiro não desiste dela, porque “o Brasil só vale a pena porque nós estamos conseguindo manter o Estado Democrático de Direito”.
Não há o que comemorar, há o que reparar. Nossa democracia, jovem e frágil, foi violada, quase golpeada e assassinada. A condenação de Bolsonaro e seus comparsas golpistas foi um ritual necessário de cura. É a mensagem, em alto e bom som, de que a impunidade que marcou nossa história – dos golpes impunes a Getúlio e JK aos horrores da ditadura militar que nunca foram devidamente julgados – não se repetirá.
É o recado de que nós, povo brasileiro, que sempre soubemos o sabor amargo da injustiça, resistimos. E que nossas instituições, com todas as suas falhas, estão aprendendo a resistir conosco.
A sentença não apaga a dor, mas impede que o algoz continue agindo. Ela não devolve os que se foram, mas protege os que estão por vir. É o ombro que finalmente se alivia para que possamos, juntos e juntas, erguer o Brasil que sonhamos: justo, democrático e para todos e todas. O futuro ainda pulsa, e ele exige de nós, mais do que nunca, compromisso com a memória, com a verdade e com a justiça!