
O Brasil é terra de macumbeiro!
Excesso de termos em iorubá ou racismo de cada dia?
Escola de samba Unidos de Padre Miguel, a UPM é penalizada por “excesso de termos em iorubá” na letra do seu samba enredo. A justificativa utilizada pela jurada do desfile das escolas de samba do grupo especial é um brinde ao racismo e à ignorância. Tão absurda que soa como uma canetada racista que ao ser dada se atreve a silenciar um idioma africano que, apesar da colonização e da violência do racismo no Brasil, vive na cultura brasileira e, em especial, dentro dos terreiros de Candomblé.
Como pode uma escola de samba com o enredo Egbé Iyá Nassô — uma homenagem a Iyá Nassô, ialorixá, mulher iorubá, oriunda do Reino de Oyó (Nigéria) e fundadora do terreiro de candomblé Ilê Axé Iyá Nassô Oká (o terreiro da Casa Branca do Engenho Velho, localizado na Bahia) — ser penalizada por incluir na letra do seu samba o idioma nativo da grande homenageada?
Essa penalização, além de prejudicar a UPM em uma competição acirrada, disputada ponto a ponto, tem relação com o período colonial e suas formas de violência contra os africanos e seus descendentes no Brasil. As milhões de pessoas africanas sequestradas durante a escravidão para o Brasil foram proibidas de falar suas línguas. Nossos ancestrais só podiam se comunicar através do idioma falado pelo colonizador, ou seja, o português. Caso contrário, ficavam submetidos a castigos. Apesar disso, foi graças à força, inteligência e estratégias de mulheres como Iyá Nassô e Iyá Obatosi que, ao fundarem um terreiro, criaram condições para que o idioma fosse preservado por meio da oralidade – uma tecnologia e princípio cultural de nossas comunidades.
A UPM cantou e contou em seu desfile sobre a história de uma das mulheres negras-africanas do Candomblé, assim como de um dos terreiros de Candomblé Ketu (origem iorubá) mais antigos do Brasil que se tem registro. Desfilando na avenida estavam a atual ialorixá da Casa Branca, Iyá Neusa de Xangô, a iyakekerê Patrícia de Iemanjá e a equede Sinha (a quem pedimos benção). Herdeiras diretas do matriarcado fundado por Iyá Nassô no início do século XIX, na Barroquinha. Foi ainda em meio às atrocidades da escravidão que o axé ancestral iorubá foi plantado germinando toda uma comunidade, o egbé de Iyá Nassô.
Deve-se respeitar a força da oralidade em cada palavra iorubá dita, rezada ou cantada em terras brasileiras dentro e fora dos terreiros. Nesse sentido, reconhecendo a importância do patrimônio cultural e de todo o respectivo legado presente nas comunidades tradicionais de matriz africana, temos o compromisso de garantir que as tradições negras sejam respeitadas e igualmente valorizadas.
Como um dos caminhos para alcançar o que almejamos, aprovamos a lei 9.301/21 que instituiu o mês Abril Verde, mês dedicado a ações de combate, prevenção e conscientização sobre o racismo religioso no estado do Rio de Janeiro. Com essa lei incentivamos os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário a promover uma agenda durante o mês de Abril dedicada à reflexão e ao debate sobre a temática da violência direcionada às religiões de matriz africana no estado.
A penalização da UPM por utilizar o iorubá em seu samba-enredo não é um fato isolado, mas um sintoma do racismo que segue tentando silenciar a presença africana na cultura brasileira. No entanto, assim como a egbé Iyá Nassô e tantos outros terreiros e lideranças negras resistiram para manter vivas suas línguas, crenças e tradições, seguimos afirmando que a oralidade, os cânticos, os saberes ancestrais e idiomas não podem ser censurados. O combate ao racismo em suas diversas faces e a valorização das matrizes africanas são compromissos urgentes, e iniciativas como o Abril Verde representam passos fundamentais para garantir que o legado das comunidades tradicionais de terreiro seja reconhecido, respeitado e protegido. Afinal, o Brasil deve muito à resistência e às múltiplas inteligências negras, e não há justiça possível enquanto nossas vozes forem punidas por ecoarem a história de quem veio antes de nós.
Parafraseando o próprio samba-enredo, o Brasil é terra de macumbeiro! Viva nossas escolas de samba que, como verdadeiras escolas, ensinam ao nosso país e ao mundo as tantas histórias que a história oficial insiste em não contar.