O capitalismo neoliberal nos leva a questionar a existência do futuro. A afirmativa não se trata de uma incerteza de amanhã tão longínquo: com o antropoceno colocamos em risco a existência dos nossos netos e netas. Corta-se a fita negra ao inaugurar uma nova era geológica da Terra caracterizada pelo impacto negativo do humano no sistema vida.

Se implanta a era em que impera a dúvida do quanto estaremos por aqui como espécie, o que se exemplifica quando climatólogos nos falam de “ponto de não retorno” ao se referirem a temas referentes a mudanças climáticas. A Terra sem dúvida alguma continuará em sua sabedoria de regeneração. Cabe-nos perguntar se estaremos aqui para acompanhar o seu renascer.

Eu acabei de completar 30 anos. Poderia ser uma ficção-distópica pós-segunda-guerra-mundial se há três décadas imaginássemos um planeta dominado por corporações financeiras que levam como ativos às bolsas de valores, em um capital especulativo, desde água e comida até territorialidades e culturas. Se aprisiona o futuro. A vida se mercantiliza em ativos a serem “rentabilizados” para lucros daqueles que detém o capital.

Atualmente 147 grupos financeiros administram 40% das empresas do mundo no sistema corporativo – 75% deles são bancos. São corporações que controlam milhares de empresas em dezenas de países, gerando inclusive sub Estados. Um fato relevante e adicional é que 3⁄4 dessa elite capitalista são intermediários financeiros.

Eles são os conglomerados responsáveis pelas mudanças dramáticas nos preços das commodities em toda a economia mundial. Contribuem pouco para a “economia real” porque são instituições não-produtivas que somente administram papéis, fluxos de informação ou corretagem de mercadorias. Por exemplo, 16 grupos controlam quase todo o comércio de mercadorias no planeta – tais como minérios metálicos, grãos e energia.

Uma das questões pulsantes hoje é como defender um novo modelo econômico que substitua a lógica de máxima extração e de saqueio da Mãe Terra e recupere uma outra forma de relação e de cuidado com a vida. Vivemos em tempos que se necessita comprovar que o astro que habitamos/exploramos é redondo.

É um negacionismo que também se estende ao não entendermos os sinais de que esse modelo econômico está nos matando e que não há tempo para negociação com aqueles que nos agonizam. Cardeais progressistas e governantes de esquerdas defendem um diálogo com os responsáveis pela destruição sob um discurso de promover o desenvolvimento e a paz.

É dolorido termos que nos assegurarmos, por vezes, em incompatibilidades dos personagens institucionais que propõem diálogo feito desde salas com cadeiras estofadas e que não sabem a temperatura que faz do lado de fora. São mesas de diálogos onde mulheres negras, povos indígenas, comunidades tradicionais, ribeirinhos, camponeses, raramente estão presentes.

E não haverá futuro se não for desde as periferias, com outros projetos de alternativa ao desenvolvimento que são tradicionais no Sul global, mas que devem iniciar no Norte, historicamente privilegiado por este modelo econômico que mata. Desde a instauração do modelo capitalista neoliberal ocidental o que se percebe é o aprofundamento da tragédia social e ecológica no mundo.

“O que esperar do mundo do poderoso que só cabem os grandes e os que os servem?”, indaga a quarta declaração da selva Lacandona (1996) do Exército Zapatista de Libertação Nacional. As revoltas populares nos ensinam “outros mundos” onde se reúnem e reforçam as cirandas que tecem resistência ao modo de vida imperial. “No mundo que queremos, todos nós cabemos. No mundo que queremos cabem muitos mundos”.

Ainda que os modelos de câmbios tenham também cambiado e as revoluções necessitem ser diárias e micros, e por vezes institucionais, há uma clara opção de doma das transformações que indicavam os movimentos sociais para “novo normal” pós COVID-19, mesmo que a pandemia tenha escancarado os limites dos projetos políticos e econômicos presentes. Os zapatistas indicam rebeldias que cabem muitos mundos, o que também hoje tem se denominado “pluriversos”: referência na luta por alternativas sistêmicas, vislumbrando outra humanidade que exige uma ruptura e transformação também das esquerdas dogmáticas e, numa reflexão específica, das teologias que insistem em legitimar, sob discurso de Igreja Neutra, um “capitalismo inclusivo”. 

Não cabe adaptação elitista se buscamos o amanhã. Urge uma conversão ecológica integral. O desejo de futuro exige transformações profundas, sem políticas de mitigação já que os corpos territórios não suportam processos lenitivos – adjetivo que remete alívio, também usado no vocabulário oncológico. O câncer instaurado pelo neoliberalismo precisa de uma quimioterapia que quebre a célula do paradigmática desenvolvimentista que tem adoecido as democracias, violado as comunidades autodeterminadas, por um profundo desejo de posse da vida que é reificada e visto como algo disponível a ser explorado.

Breves exemplos: no campo, se vive uma crescente onda de assassinatos dos defensores ambientais e lideres e movimentos sociais; na cidade, um genocídio das populações negras; os territórios estão sendo oferecidos a bolsas de valores como segurança crescente desde a crise de 2008; as terras indígenas são mapeadas pelo desejo de mineração.

São guerras e violências que refundam as economias patriarcais que inicialmente separou a natureza do humano. Que desenvolvimento é esse, fruto de uma violência econômica que se sustenta no lucro para 1% da humanidade? Também se caracteriza como negacionismo o fato de não admitir que esse sistema econômico mata e aprisiona o futuro. 

Diante a esse controle financeiro, ainda que os frequentadores de Davos tentem propor um grande reset na economia internacional sob o prisma verde, a gênese da destruição é elemento presente e indissociável daquilo que se discute em grandes assembleias econômicas desde um planos de um futuro para poucos. A vida que resistirá é tão pouca que pode não incluir a humanidade.

O Fórum Social Pan Amazônico (FOSPA) reuniu em Belém, entre 28 e 31 de julho resistências que propõem um outro mundo possível, em um movimento que indica a urgência de repensarmos as economias em um viés ecológico e biocêntrico.

São gritos contra a exploração dos seres humanos – principalmente os periféricos – e da Mãe Terra contra o capitalismo global. A Carta de Belém assinala para as revoluções diárias que “retomam em todo o mundo as manifestações altermundialistas, o fortalecimento das lutas por autonomia territorial, dos movimentos feministas, negros e dos povos indígenas que indicam possibilidades reais de alterações no curso que a história vem seguindo nos últimos anos”.

Precisamos escutar mais Anacletas, Alessandras Munduruku, Elzas Nãmãdi Xerente, Clovis, Mikaels, Flavias, Larissas e outras e outros que pisam os territórios de resistências. Ou é desde o “pluriverso dos povos” que se gestará o futuro, ou não será. 

* Guilherme Cavalli é jornalista ambientalista. Trabalhou junto ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e atualmente coordena a Campanha de Desinvestimento em Mineração, uma iniciativa da rede latinoamericana Igrejas e Mineração com outras dezenas de organizações.