Nós podemos tolerar homofobia, mas jamais a linguagem neutra
Terrorismo sobre episódio envolvendo adaptação do hino nacional evidencia que seguimos permitindo que a extrema-direita dimensione o peso de coisas que são muito menores do eles fazem parecer que são.
No dia 20 de agosto, o coach Pablo Marçal, candidato a prefeito de São Paulo e condenado por furto qualificado, publicou um vídeo de 13 segundos em sua conta de Instagram (até então seguida por 12,7 milhões de pessoas) de cunho profundamente homofóbico. No vídeo, ele e um grupo de homens apoiadores de sua candidatura entoavam, como hino de torcida organizada, o seguinte cântico: “ô Boulos viado, ô Boulos viado, ô Boulos viado”. O vídeo foi apagado 10 minutos após a publicação. No dia 24 de agosto, durante um comício de Guilherme Boulos, também candidato a prefeito de São Paulo, a intérprete do hino nacional fez uma adaptação em um pequeno trecho da letra: ao invés de cantar “dos filhos deste solo és mãe gentil”, preferiu – por iniciativa própria, como a assessoria do candidato precisou esclarecer para a imprensa – utilizar linguagem neutra e substituir o gênero masculino demarcado por “des filhes”.
Ainda que frases homofóbicas como a de Pablo Marçal sejam crime no Brasil desde 2019, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) equiparou a homotransfobia aos delitos previstos na Lei do Racismo (fazendo com o LGBTfobia se tornasse crime mesmo não tendo uma lei própria), o assunto passou batido. As mídias e personalidades de direita não estranharam, as páginas e lideranças de esquerda também não se manifestaram de forma enérgica. O que foi tratado como crime, por incrível que pareça, foi o uso da linguagem neutra em duas palavras do hino nacional. Uma histeria coletiva tomou conta das redes sociais, com páginas progressistas do campo da esquerda acusando Boulos de “amadorismo” e de ter “colocado a possibilidade de ganhar em risco” por conta de algo que sequer chega perto de ser crime.
A reação nas redes aos dois episódios evidencia uma realidade triste: a naturalização da LGBTfobia em camadas muito profundas da sociedade brasileira. Se houvesse algum tipo de intolerância coletiva à LGBTfobia, inclusive, Pablo Marçal sequer teria apoio para sustentar uma campanha eleitoral: em 2022, o bolsonarista convicto foi condenado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por disseminar uma fake news de 2018 sobre a distribuição do inexistente “kit gay” em escolas, como parte de sua campanha difamatória contra Lula. A decisão, que impunha multa de R$ 10 mil por dia em caso de descumprimento, dizia que “o caso é de reiteração na divulgação de conteúdo expressa e judicialmente já reconhecido como desinformativo e ofensivo por esta Casa tanto no pleito de 2018, como nas presentes eleições, o que impõe sua imediata remoção”.
Em nenhum momento a candidatura de Pablo Marçal foi colocada em xeque – nem por seus adversários, nem por sua base apoiadora – por conta da condenação do TSE, assim como o recente vídeo de cunho homofóbico passou batido da imprensa, da arena de debate nas redes sociais e até mesmo da própria equipe de Guilherme Boulos. O mesmo não aconteceu em relação ao hino adaptado: adversários atacaram veementemente o psolista (a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro chamou a versão de “insanidade mental”), apoiadores também não mediram críticas ao acusarem Boulos de “lacração” irresponsável.
É curioso pensar no abalo sísmico que uma palavra adaptada para linguagem neutra pode causar a um candidato – mesmo um de esquerda, tecnicamente alinhado à pauta do fomento à diversidade. Primeiro porque o debate na forma como é colocado nas redes sociais sequer existe oficialmente dessa forma. Esse pânico coletivo sobre linguagem neutra é um factóide desenvolvido pela extrema-direita para distorcer a pauta da forma mais desonesta possível de modo a fermentar a LGBTfobia cristalizada na sociedade brasileira. O debate sério que se desenrola dentro da comunidade LGBTQIAPN+ sobre linguagem neutra está muito distante da histeria que a extrema-direita faz sobre o assunto, transformando-o em um bicho-papão sem sentido. De onde exatamente vem o medo da linguagem neutra senão da LGBTfobia que se recusa a reconhecer que existem corpos dissidentes daquilo que se compreende enquanto cis-heteronormatividade?
Colocando na ponta do lápis, o debate da linguagem neutra nunca foi impositivo, pelo contrário: se coloca enquanto opção para aqueles que desejam se expressar de forma mais inclusiva e para os que não se sentem confortáveis com as demarcações de gênero na linguagem. O problema não é a linguagem, é o objeto ao qual ela se refere. A extrema-direita faz isso com diversos outros debates ligados à identidades de gênero: banheiros unissex, crianças trans. Todos esses debates são pulverizados nas redes sociais por segmentos conservadores da sociedade com uma série de argumentos que simplesmente nunca fizeram parte do debate real sobre eles. A estratégia (efetivada com sucesso, como podemos perceber) é alimentar o medo do diferente que sustenta a LGBTfobia. Cirurgias de redesignação sexual em crianças, mulheres cis vítimas de estupro por mulheres trans, projeto que obriga linguagem neutra em órgãos públicos – são esses alguns dos exemplos de narrativas comprovadamente mentirosas que são sobrepostas pela extrema-direita a debates de inclusão que acabam sendo sufocados.
Mas isso só acontece porque mesmo os setores de esquerda toleram a naturalização da LGBTfobia em algum grau. Quando uma página de esquerda diz que Guilherme Boulos colocou a possibilidade de vitória em risco por conta de uma adaptação irrisória de uma palavra para a linguagem neutra, ela própria legitima a narrativa da extrema-direita de que aquilo é um comportamento realmente condenável. Há quem argumente que o problema está em “macular um símbolo nacional” como é o caso do hino – mentira. Caso contrário, versões da bandeira do Brasil substituindo “ordem e progresso” por “samba, praia e caipirinha” e afins não fariam tanto sucesso entre a esquerda-festiva. O que acontece é que nos acostumamos enquanto sociedade a naturalizar que a defesa de pessoas, símbolos e discursos sobre diversidade sexual e de gênero seja a primeira moeda de troca na hora de barganhar votos de uma sociedade estruturalmente LGBTfóbica, cujo caráter LGBTfóbico não pode sequer ser confrontado.
É por isso que a homofobia de Pablo Marçal é relativizada e a adaptação da cantora em linguagem neutra não. Se o campo progressista brasileiro fosse realmente comprometido com o debate da diversidade, os ataques da extrema-direita em relação ao episódio do comício teriam sido tratados em uníssono como uma crise de histeria despropositada. Como algo que estava recebendo muito mais importância do que realmente demandava; como mais um exemplo do “mimimi” da extrema-direita que não aceita ver suas verdades absolutas empoeiradas sendo minimamente questionadas. No fim, a adaptação da cantora não muda nada na sociedade; vale, portanto, a energia desperdiçada nesse episódio? Não seria mais razoável tratar o que aconteceu com a irrelevância que, no fim do dia, o constitui? O problema é que as críticas da extrema-direita fazem eco mesmo dentro da esquerda, que foi socializada pela mesma realidade LGBTfóbica que seus adversários políticos e também preserva certo grau de resistência para desconstruir a cis-heteronormatividade e certo grau de tolerância para a LGBTfobia. Tanto a homofobia de Marçal quanto a linguagem neutra da intérprete do hino se situam, paradoxalmente, dentro da mesma definição: em uma sociedade homofóbica, ambas são crimes sem lei próprias, ainda que sob perspectivas diametralmente opostas.