Ninguém merece um enterro como o das vítimas do Covid-19
Visitei o cemitério da Vila Formosa e presenciei o enterro de pessoas por Covid-19, o que me deixou bastante tocado e triste, afinal, a doença mal permite o adeus ao ente querido; A angústia também foi parte de toda visita ao posto de saúde do Jd. Paulistano, na Brasilândia.
Visitei o cemitério da Vila Formosa e presenciei o enterro de pessoas por Covid-19, o que me deixou bastante tocado e triste, afinal, a doença mal permite o adeus ao ente querido. A angústia também foi parte de toda visita ao posto de saúde do Jd. Paulistano, na Brasilândia.
Em menos de 24h fui para um cemitério e um posto de saúde. Nos dois espaços, o clima foi de luto e tensão. Mesmo quem está acostumado a lidar com a agonia, o sofrimento humano, e até com os limites entre a vida e a morte, jamais viu algo dessa magnitude.
“Eu tenho 26 anos neste cemitério e nunca vi algo assim”, é o que me contou um agente sepultador, enquanto andávamos pelo cemitério da Vila Formosa, zona leste da cidade.
O medo, contudo, não parece ser suficiente para a administração pública e os funcionários ficarem a todo momento com equipamentos de segurança. Notei todos uniformizados, mas alguns sem luvas, muitos sem máscaras de proteção, e ninguém com uma viseira. Quando eram chamados para o trabalho, se equipavam. A contaminação pelo Covid-19, o novo coronavírus,, contudo, não escolhe hora ou momento para acontecer.
A visita ao cemitério para a produção de conteúdos para o Alma Preta também foi o momento de se deparar com enterros em meio à pandemia. É realmente estarrecedor ver alguém ir para uma cova com pouquíssimas pessoas presentes, todos mascarados e distantes do caixão.
Também fiquei espantado com a velocidade do enterro. Foram dois em aproximadamente 10 minutos. Os agentes sepultadores colocaram os caixões, da forma mais respeitosa possível diante do momento em que vivemos no país, e logo começaram a jogar terra em cima. Na sequência, outro caixão, outro enterro, mais terra sobre a pessoa que se vai, e assim a rotina no cemitério seguiu.
Sinto muito por todos que tiveram que passar por isso e por quem terá de passar. A tristeza, porém, perde lugar para a raiva quando percebo que muitas pessoas, para “salvar a economia”, serão enterradas desse modo totalmente frio.
Que pessoas morreriam, ninguém nunca teve dúvidas. É um vírus que ataca de maneira agressiva o sistema respiratório. Mas a quantidade de vítimas e quem serão as vítimas, esses são fatores determinados pela política. E para o neoliberalismo, a vida de pretos e pobres não vale nada, ainda mais se ela “atrapalhar” o lucro.
O cenário de angústia seguiu no posto de saúde na Zona Norte da cidade. Lá, os profissionais entrevistados alertaram sobre a chegada da doença nas periferias e anunciaram que o quadro de mortos deve apenas piorar nas próximas quatro semanas, algo bastante preocupante, na medida em que regiões da cidade, como a zona leste, estão com todos os leitos de UTI ocupados.
O posto, diferente do cemitério e ao menos por enquanto, estava vazio. Todos que estavam acostumados a ir para lá por conta de problemas de saúde mais leves, ou mesmo por causa de consultas agendadas, estão em casa. Os exames foram postergados e as pessoas da região orientadas a não se deslocarem às unidades básicas de saúde.
A boa notícia foi ver quase todos os profissionais com equipamentos de proteção, com o uso de máscaras, luvas, e mesmo viseiras. Na UBS do Jardim Paulistano, na Brasilândia, não me senti um ET com o uso de uma máscara e uma viseira. No cemitério, sim.
Em ambos espaços, confesso ter sido tomado pelo medo em alguns momentos. São ambientes com grande possibilidade de contaminação, mas que devem continuar a funcionar, por serem funções essenciais para o cotidiano da vida humana.
O jornalismo também. Acredito, e muito, no jornalismo feito pelas periferias, para as periferias, pelo e para o povo negro como um trabalho essencial. Precisamos contar as nossas histórias, mesmo nos momentos mais delicados da vida humana, como uma pandemia.
Que esse momento sirva para muitas reflexões e mudanças de atitude. Que passemos a valorizar, não só durante a pandemia, o trabalho dos profissionais da saúde e agentes sepultadores. E, principalmente, que comecemos a mudar as nossas prioridades enquanto sociedade, deixando de lado a acumulação desenfreada e valorizando cada vez mais a vida.
O cemitério da Vila Formosa, o maior da América Latina, tem recebido a maior parte das vítimas de Covid-19 na cidade de São Paulo. O local tinha uma rotina média de 30 enterros por dia, número que saltou para 60 desde o início da pandemia. pic.twitter.com/9LrGqCp4Wc
— Alma Preta (@Alma_Preta) April 22, 2020