“Não podemos mais cair na cilada da meritocracia, é preciso fortalecer o coletivo”, diz a jornalista Luciana Barreto
Luciana Barreto fala sobre a sua profissão, o avanço da pauta racial no Brasil e a falácia da meritocracia, que muitas pessoas e meios de comunicação ainda costumam utilizar por aí – de forma errônea – para impedir o avanço de grupos minorizados na sociedade e reforçar a polarização política
Luciana Barreto é uma profissional ímpar. Dessas com muito talento, garra, gana e propósito mesmo. Não à toa, é uma das jornalistas e apresentadoras de televisão mais premiadas da atualidade. É formada em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, a (PUC-Rio), e mestre em relações étnico-raciais pelo Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca.
Na entrevista de hoje, ela fala sobre a sua profissão, o avanço da pauta racial no Brasil e a falácia da meritocracia, que muitas pessoas e meios de comunicação ainda costumam utilizar por aí – de forma errônea – para impedir o avanço de grupos minorizados na sociedade e reforçar a polarização política.
Leia com muita atenção. Com a palavra, Luciana Barreto:
André Menezes – Minha querida, eu gostaria de começar essa entrevista falando sobre sua profissão, que é inspiradora para muitas meninas pretas. O que te fez escolher o jornalismo? E como foi o início da sua carreira? Quais desafios você enfrentou?
Luciana Barreto – Olha, o que me fez escolher o jornalismo é exatamente um tanto da minha história, então vai se misturar um pouquinho, quando eu falar de profissão, vai se misturar um pouquinho com a minha história. Eu venho de uma comunidade muito pobre, e lá não tinha, nem no meu bairro, nem na minha família, nenhuma geração universitária. Eu sou a primeira, como várias outras pessoas do meu bairro e da minha região. E eu percebia, já muito jovem, que a história da periferia, e isso muito mais no passado, nas décadas de 80 e 90, as histórias de periferia, quando apareciam, eram as histórias da violência e da dor.
E o que importava para nós ser denunciado, não era denunciado. Então, eu já adolescente, já percebia o que era importante, o jornalismo era importante, já tinha colocado na minha cabeça que eu queria ser jornalista. O meu mundo era muito restrito à comunidade periférica, à Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. Então, eu comecei a entender que eu queria fazer denúncias da Baixada Fluminense.
Por muitas vezes eu passava na frente do antigo Jornal do Brasil, que ficava na Avenida Brasil, e eu pensava: poxa, vou trabalhar aí, na redação do Jornal do Brasil, um jornal impresso. E então, através de um projeto social, eu participei de um cursinho pré-vestibular para negros carentes e entrei na universidade através do PTNC. Fiz cursinho, entrei na PUC, ganhei uma bolsa de 100%, ali eu já comecei a enfrentar as dificuldades de estar na universidade. Dificuldades como: pagar passagem, pegar carona, fazer faxina para conseguir dinheiro para me manter na universidade. Eu precisei trabalhar e, trabalhando, o meu primeiro emprego foi em televisão. Foi aí que eu caí em televisão e meu caminho se desvirtuou do jornal impresso, que era o que eu queria desde o início. Mas a minha motivação no jornalismo sempre foi a denúncia de violações de direitos humanos, dar visibilidade a isso. Hoje eu consigo falar dessa maneira, óbvio que eu não pensava isso durante a minha adolescência. A minha motivação sempre foi dar visibilidade a problemas periféricos, o que hoje eu chamo mais de pautas negligenciadas. Até hoje nós temos muitas pautas negligenciadas sob a desculpa de que talvez a gente não tenha um público-alvo, que talvez isso não seja para o nosso público-alvo, e então o resultado é a negligência de muitos desses problemas do Brasil.
André Menezes – Levando em consideração todos os lugares que você já atuou e trabalhou, quais desafios você se lembra de ter enfrentado?
Luciana Barreto – Olha, o desafio básico, estrutural, eu acho. Na minha vida, e eu acho que nas vidas de muitas pessoas pretas, periféricas, o desafio do autoconhecimento e o crescimento pessoal são os mais críticos. Eu me lembro de enfrentar esse primeiro desafio já na universidade. Quando eu entrei numa universidade de elite, eu me sentia um corpo estranho dentro da PUC do Rio de Janeiro, porque era não só a aparência, as vivências, a fala, então assim, já num primeiro momento é aquele choque do crescimento.
Aquilo ali, lidar com esse outro mundo que você desconhece, especialmente quando você vem daquela proteção onde somos todos muito parecidos na nossa pobreza, nos nossos problemas, e aí quando você se encontra com esse outro mundo, eu acho que o primeiro choque é o choque do autoconhecimento e do crescimento pessoal, e isso eu carreguei e eu diria que eu carrego até hoje, e por quê? Porque eu ainda enfrento isso até hoje. Com mais de 20 anos de profissão, eu ainda enfrento algumas dificuldades quando, por exemplo, lido com a minha carreira ou recebo muitos elogios, ou prêmios. Pra falar de premiação, a gente tem aquela coisa assim, tipo, não é uma síndrome do impostor, mas é uma questão de vivências. Talvez precisamos ainda de um estudo sobre isso, de vivências periféricas, de você sair de um lugar, entrar em outro lugar, mas de você estar sempre lidando com aquele lugar que você saiu e que você sabe que você pertence a ele e que você não consegue trazê-lo para perto, entendeu?
Não sei se eu estou conseguindo me fazer entender no sentido de, hoje, para te dar um exemplo, eu ainda vivo na periferia, eu moro numa área nobre do Rio de Janeiro, na zona sul do Rio de Janeiro, mas eu vou semanalmente na periferia, minha família é de lá, meus amigos são de lá, meus pais são de lá. E lidar com aqueles mesmos problemas, olhar toda semana que temos muito que avançar ainda, me coloca, me traz de volta para esse lugar que talvez não seja tão sucesso assim, talvez não houve tanto sucesso assim. O que eu quero dizer é que, às vezes, o nosso crescimento, o nosso avanço pessoal, e eu estou falando da parte material, da parte econômica e da parte profissional, quando ele não vem no coletivo, ele te agride muito. Eu acredito que isso ainda é uma das maiores dificuldades, um dos maiores obstáculos que a gente que vem da periferia, que chega a um determinado local e vê que aquilo ali não é um avanço coletivo, que estamos falando de uma questão individual, isso mexe muito ainda conosco, então acho que até hoje eu carrego isso, sabe?
Eu não consigo comemorar e dizer, olha como eu cheguei aqui, olha como sou uma representatividade. Eu falo sobre isso em todas as minhas palestras, quando falam “ah, você é uma inspiração, você é perfeita, você é uma inspiração para periferia”, eu falo: olha, eu aceito o elogio, já entendi, já tenho bastante tempo de psicóloga, aceito o elogio, mas não podemos transformar essas histórias heroicas em exemplos, temos que parar de transformar nossas vidas em histórias heroicas, entendeu? Precisamos ter um avanço coletivo, e para haver esse avanço coletivo devemos denunciar que não tem possibilidade de todos irem, que precisamos ir em conjunto.
André Menezes – De todas as coberturas que você já fez na televisão, quais foram as mais significativas para ti?
Luciana Barreto – Eu vou começar pela última, muito significativa, que é do George Floyd. O momento George Floyd, para mim, foi um momento meio divisor de águas no mundo. Eu estava na CNN que, naquele momento, era uma emissora que estava chegando ao Brasil. Nós estávamos no meio da maior crise sanitária da nossa geração. O mundo já estava em reclusão há algum tempo, todo mundo dentro de casa, todo mundo pensando se existiria amanhã. Então, eu classifico como uma tempestade perfeita, porque era um momento onde todos se perguntavam: existe amanhã?, quem eu sou?, o que eu estou fazendo?, talvez eu nem esteja vivo, o que é esse vírus? E, de repente, um homem negro é morto, assassinado daquela maneira brutal, e todo mundo assistindo. Naquele momento estava todo mundo com a emoção à flor da pele, eu me lembro de chorar ao vivo, me lembro de não conseguir me segurar falando durante a cobertura do George Floyd. Eu acredito que a dor do George Floyd, que é uma dor constante na gente, cotidiana para a população preta, foi externada para o mundo e obrigou, naquele momento, os meios de comunicação a entenderem os seus próprios problemas. Problema de não termos pessoas que saibam falar sobre isso, de não termos negros no nosso canal.
Me lembro da Europa, quando vários europeus fizeram passeata, mesmo em meio à maior crise sanitária, enfrentando a polícia para derrubar monumento de escravizador que estava nas praças. Isso foi um dos movimentos que também ocorreram naquele momento.
Eu acredito que foi um divisor de águas. Então, eu diria que vivenciar o caso George Floyd e estar numa emissora que estava chegando ao Brasil com o slogan de “a maior do mundo”, agora aqui no Brasil, com toda a possibilidade de fazer cobertura mundial, no meio de uma crise sanitária e sendo a única âncora negra, sim, foi um dos momentos recentes mais importantes da minha carreira.
Depois, eu fiz muitas outras matérias e tive muitos outros momentos. Porém, vale lembrar também da TV pública, porque eu sou apaixonada pelo jornalismo público. Eu vou lembrar quando estava na TV pública e houve a marcha das mulheres negras em Brasília. As mulheres negras colocaram dezenas de ônibus em Brasília, marcharam por Brasília, e eu fui para lá fazer uma cobertura especial na rua, eu era a única jornalista fazendo a cobertura daquele momento, e a grande mídia estava tentando entender ainda naquele momento, o que estava acontecendo, o que é esse monte de mulher aqui, o que é esse monte de mulher negra aqui nas ruas de Brasília, ninguém estava entendendo nada direito ainda, porque sequer olhavam para essa pauta como uma pauta tão importante. Hoje é uma pauta importante para todos, mas, naquela época, foi em 2015, se eu não me engano, e era uma marcha que foi muito importante, mas acho que a cobertura deixou muito a desejar por parte da grande mídia. Se fosse pós-George Floyd, e eu vou usar esses dois exemplos, se fosse pós-George Floyd, tudo teria sido diferente.
André Menezes – Como os grandes veículos de comunicação podem abrir mais espaço para profissionais pretos?
Luciana Barreto – Olha, essa é uma pauta que eu estou dedicada, tenho até no meu livro, que fiz colaboração com outros jornalistas, eu colaborei com jornalismo antirracista. É um tema que penso há algum tempo, e o que precisamos é de pessoas pretas, vivências pretas nas redações. Não é só pessoas pretas, mas vivências pretas nas redações. Se fosse Conceição Evaristo, falaria em escrevivências, porque temos ali um número muito reduzido, muito pontual, e quando, em alguns momentos, eu diria muito contido de jornalistas pretos. O que é que eu estou querendo dizer? Algumas redações pós-George Floyd, sempre deixando isso muito claro, porque antes do George Floyd, nem isso havia, pós-George Floyd, começaram a olhar, e perceber “nossa, nós não temos nenhum preto aqui, temos que botar pessoas pretas aqui”, e então você coloca pessoas pretas e você começa a não entender as pautas sugeridas por essas pessoas. Então estou falando de vivências mesmo.
Então, assim, eu vejo, acompanho as redações, às vezes, com o que chamamos de tokenismo, sabe? Algumas pessoas pretas atuando, mas a não abertura para as pautas que essas pessoas sugerem, para as pautas que são verdadeiramente importantes. A gente avançou? Avançou. Temos mais pessoas? Temos. Por exemplo, temos a TV Globo, as organizações Globo agora, colocando muitos jornalistas pretos, e eu acho bem interessante o que eles estão fazendo. Acho que, organicamente, para frente, vai melhorar muito, mas ainda precisamos das vivências. Ainda recentemente, vimos um café com o presidente. O presidente vai fazer um café com a imprensa. E aí a foto era de jornalistas brancos. As pessoas, os veículos de comunicação, todos tiveram a mesma ideia, mandar o seu jornalista branco para o café com o presidente!
Isso daí está muito longe do que queremos. É muito longe, entendeu? Então, acho que no momento do caso do George Floyd, houve aquele “boom”, assim, de vivência dentro das redações e pessoas pretas chegando, pessoas pretas sendo entrevistadas, listas de especialistas, mas depois tudo isso começou a se modificar, andar para trás, regredir, porque o racismo é assim. Ele se modifica para voltar para o mesmo lugar. E sempre, né? Não sou eu que digo isso. Abdias do Nascimento já dizia isso. Então essa é a estratégia do racismo, é uma estratégia muito cruel, mas ele dá uma modificada para continuar do mesmo jeito.
André Menezes – Você acredita que ainda falta mais sensibilidade com a pauta racial?
Luciana Barreto – Então, acho que é mais do que sensibilidade. Se você assistir esse trecho da Fernanda Torres, que foi ao ar no último Roda Viva, na TV Cultura, ela fala sobre o quanto os brancos estão perdidos. Eu acho que é mais do que sensibilidade, eles não conseguiram e não conseguem captar a importância da diversidade, a importância cultural, financeira, histórica, nada, entendeu? Quem conseguiu captar está, inclusive, capitalizando isso.
O governo da Noruega me convidou para ver um pouquinho do projeto deles. Em 2019, eu fui à Noruega, e fui ver a questão de gênero. Eles estão entre os cinco países com maior equidade de gênero no mundo. Eles conseguiram acrescentar ao PIB deles algo em torno de um trilhão, desde que eles começaram a incluir as mulheres no mercado de trabalho, e criar condições para que houvesse maior equidade dentro do mercado de trabalho. Eu te digo, eles fizeram muito mais, eles fizeram uma mudança de mentalidade de tal maneira que, quando você anda nas ruas de Oslo, você consegue perceber essa mudança de mentalidade. Uma coisa que me chamou a atenção por lá foi a licença paternidade. Por lá, eles têm a licença maternidade e paternidade de um ano, visando trazer equidade entre os homens e as mulheres. Os homens são obrigados a ficar em casa por quatro meses. E então, as mulheres quatro, homens quatro, e depois eles veem quem fica com os outros quatro. Outra coisa muito interessante que notei nas ruas são as plaquinhas de pessoas atravessando com criança no colo. Não é uma mulher, é um homem que está na plaquinha.
Isso é uma mudança de mentalidade, sabe? É um homem que está segurando a criança no colo, não é uma mulher. Então, assim, isso é enxergar muito lá na frente, entendeu? E a gente não, nós não estamos, talvez, a nossa questão ideológica, a nossa herança escravocrata, ela esteja muito mais adiante da nossa ambição por um Brasil potente no futuro.
Porque estamos o tempo inteiro tensionando entre a nossa maldita herança escravocrata, e eu detesto essa palavra maldita, mas enfim, nós ficamos o tempo inteiro tensionando entre um Brasil que tem uma potência enorme e a herança escravocrata que nos puxa para trás mais uma vez. E com isso temos fuga de cérebros, perdemos muito de inovação que, às vezes, está dentro das periferias, dentro das favelas, ou que está numa mente preta. Perdemos dinheiro porque continuamos muito presos a um país machista, misógino e racista.
André Menezes – Quando você decidiu deixar a CNN Brasil, você disse que precisava ficar mais próxima a sua família. Qual a importância dos seus entes queridos para sua vida?
Luciana Barreto – Eu crio uma filha sozinha. Eu sou uma mãe divorciada e crio a minha filha sozinha já há algum tempo. Em 2019 eu fui para São Paulo, para a CNN, com a minha filha. Ela não se adaptou muito bem, veio a pandemia, e eles também tiveram outra ideia de projeto para mim. E eu consegui voltar para o Rio de Janeiro com a minha filha. A minha filha então começou a se envolver aqui no Rio de Janeiro, e eu estava feliz da vida por aqui quando eles me pediram para voltar para a CNN em São Paulo.
Então, eu não tive muita escolha. Eu fui, e para não prejudicar a rotina dela, eu deixei ela aqui. Era mais confortável para ela. Só que essa rotina de ponte aérea, essa distância da família, fazendo jornalismo, fazendo o Hard News, e eu amo o Hard News, de verdade. Mas, algumas vezes, eu me perguntava, nessa conta que você está fazendo, o que está sobrando?
Sobe um, pega dois, coloca três, vem quatro, cinco… O que sobra nessa conta? Então, eu vi que estava um pouco me violando enquanto pessoa. Violando o meu corpo físico, violando as minhas relações emocionais, as minhas relações afetivas, muito. E eu achei que a conta não estava fechando mais. Então, eu realmente agradeço muito à CNN. Foi um local muito importante, de muita visibilidade para mim. Foi um local que eu fazia um jornalismo Hard News, eu gostava muito. Mas eu tenho uma paixão, digamos, por um jornalismo ainda mais comprometido com questões sociais e raciais.
Eu acredito que cumpri a minha parte na CNN. Eu fui muito uma voz que denunciava as desigualdades, mesmo dentro da CNN. Mas, talvez eu possa contribuir mais daqui para frente, sabe? Eu fiz isso na TV pública durante muitos anos. Inclusive, os meus prêmios, a maioria dos meus prêmios são na TV pública, no jornalismo público, porque eu queria olhar para esse local de denúncia, para esse local que dialoga. Eu não estou querendo… Estou medindo as palavras para não fazer uma crítica ao Hard News. Mas é só para dizer que esse local, que esteja muito mais próximo das periferias, mais próximo dos problemas sociais, mais próximo de quem está pensando um Brasil melhor, que é a minha grande paixão.
Muitas vezes eu estava ali, todos os dias, falando às vezes das picuinhas dentro do Congresso Nacional. E eu ficava: “cara, esses caras estão de brincadeira comigo, tem um Brasil precisando de ajuda e esses caras estão fazendo picuinha”.
Então, assim, aquilo ali já me incomodava às vezes. Eu quero estar muito próxima dos pensadores, das pessoas que vão contribuir para o Brasil, da educação, de olhar o Brasil periférico, o que está sendo proposto. Por exemplo, o jornalismo cultural é algo que eu sinto falta. Sinto muita falta porque fiquei muito tempo no Hard News. Então, olhar para o que está acontecendo na cultura. Isso tudo para mim é algo que eu sinto muita falta e eu gostaria de me dedicar a isso também agora. Amo o Hard News. Amo política, amo economia, adoro, mas, assim, não quero me distrair.
Eu sei de onde eu vim. Eu sei muito bem de onde eu vim. Eu sei muito bem o que está acontecendo nas periferias nesse momento. Eu sei muito bem o que está acontecendo nos rincões do Brasil nesse momento. O que está acontecendo com comunidades indígenas. O que está acontecendo com quilombolas. O que está acontecendo na região metropolitana do Rio de Janeiro enfrentando milicianos. Quem é que está conseguindo furar tudo isso? E eu não queria passar por cima de tudo isso, eu quero poder falar disso também.
André Menezes – Você acha que a pauta racial avançou no Brasil?
Luciana Barreto – A pauta racial avançou muito no Brasil. Tanto avançou que temos um tensionamento com grupos ultraconservadores que estão dobrando a aposta, não aceitam esse avanço. Então, assim, esse tensionamento é natural justamente porque houve esse avanço. Este avanço é fruto de grandes nomes do movimento negro brasileiro, Abdias do Nascimento, Lucia Xavier, Jurema Werneck, Sueli Carneiro. O Movimento Negro Unificado, Frei Davi, grandes nomes que estão na luta. Os parlamentares negros também, muitos deles. Temos vários artistas negros. Não quero falar nomes porque senão esqueço pessoas. Mas são grandes nomes, que estão por trás desse avanço. E acho que devemos isso a eles, aos nossos mais velhos que continuam vivos.
Também devemos isso aos nossos antepassados que lutaram muito, tiveram… Uma palavra que eu gosto muito, se eu tivesse que resumir o negro no Brasil, eu resumiria em estratégia. Então, eles foram muito estrategistas para estarmos aqui nesse país e que hoje tivéssemos mais da metade da população brasileira autodeclarada negra. Esse, para mim, é um grande avanço.
Podemos também olhar o copo um pouco mais vazio, por exemplo, o STF com menos mulheres, a expectativa era de uma mulher negra que não teremos. Provavelmente a avaliação será “poxa, mas avançou e como é que não chegamos nesse lugar”?
Acho que estamos chegando. Estamos chegando com muita robustez, eu diria. O que é robustez? Eu não ficaria feliz e não fico feliz quando eu estou numa redação que eu sou a âncora negra, e quando olho a redação, ela é inteira branca. Eu fico feliz quando temos uma redação 40%, 30%, 20% negra em vários locais. Neste caso, eu diria, estamos chegando com robustez, entendeu? Não é para inglês ver. Então, assim, o fato de termos entrado na universidade, aumentado a diversidade, as cores da universidade, o fato de termos várias reuniões de advogados negros, de estarmos chegando na parte de cima do sistema judiciário com robustez, a Ordem dos Advogados do Brasil, estamos chegando com robustez. Estamos chegando na medicina com robustez. Temos grupos de dermatologistas negros, vários médicos negros. Então, isso é o que eu chamaria de um avanço robusto e estrutural. E eu acho que isso é mérito e fruto desses nossos mais velhos e eles têm que ser celebrados o tempo inteiro.