Não farão política, nem arte, sem nós!
Em “A Queda”, Glória Groove nos entregou a obra-prima do ano.
Há três anos e dez meses, eu encerrava minha coluna no Jornal do Brasil. Dezembro de 2017. Menos de um ano depois, o Brasil afundava junto ao bolsonarismo em um poço parecido com aquele do mais recente clipe de Glória Groove; no mesmo ano em que eu era eleita deputada estadual no Rio de Janeiro. Hoje retorno a esse ofício das palavras, como comunicadora popular que também sou, neste caminho aberto pela Mídia NINJA para escoar as ideias e análises que povoam minha mente.
Imersa na conjuntura política pela qual passamos, é a arte quem tem possibilitado catarses, e foi essa a sensação ao ver “A Queda”. Em uma confluência entre O Mundo Imaginário de Dr. Parnassus e Burlesque, Glória Groove nos entregou a obra-prima do ano, pois a meu ver, podemos considerar assim a extraordinária e contundente performance que a artista drag queen realiza com sua nova música.
O lançamento de Glória acontece na mesma semana em que outra figura do pluriverso LGBTQIA+, a vereadora Erika Hilton, negra, transvestigênere e mulher mais votada de São Paulo, é eleita pela Revista Time como uma das 20 lideranças de hoje e do futuro em todo o mundo. Tão gigante quanto nossa outra Érica, a Malunguinho, deputada estadual de São Paulo que crava em nosso imaginário a alternância de poder na democracia e acabou de lançar a Escola Ancestral Aparelha Luzia; de arte, cultura e política. O feito de Groove nos leva a uma profunda reflexão sobre a irreversibilidade dos processos de representatividade das chamadas “minorias”, que são as maiorias sociais no Brasil, como sabemos.
Ela nos joga em uma alucinante viagem ao mundo Groove e, sem dúvida alguma, futuramente será uma peça importante para entender esse momento em que o limbo emerge em todos os sentidos, na música e na política. Historicamente, esses foram dois importantes caminhos, em todas as sociedades humanas, para mudanças e rupturas. Uma sendo elemento do mundo das artes que nos ajuda tanto a retratar e entender a política, auxiliando de maneira quase sempre especial, a suportar sem sucumbir às agruras dos percalços do poder, ainda mais quando o poder é exercido por figuras estróinicas e esdrúxulas como Bolsonaro.
Sim, “A Queda” nos faz aludir ao fim da era do terror genocida de Bolsonaro e seu secto macabro. Glória irrompe em cena e logo mostra a grandiosidade de artista que é, esfregando na cara do mainstream que sabe muito mais do que lacrar sensualmente. Ela sabe articular a distopia, o absurdo e o abjeto, nos fazendo vibrar por mais. Ela nos deixa sedentos por mais, e quando acaba não sabemos o que fazer senão ouvir de novo, e de novo, famintos, como se não quiséssemos deixá-la sair de cena. Já vejo Glória com sua “A Queda” em grandes palcos e olha, nada mais será como antes, nem para ela, nem para nós e nem para o Brasil.
Glória é a personificação do sonho das que vieram antes, das que só tinham a Galeria Alaska ou palcos pouco ortodoxos, ou ainda das poucas que conseguiram, à luz do dia, mas com muitas concessões não sair de cena. Imagino, o que diria Rogéria, Lafond, e tantas outras ao assistir a essa magnífica obra onde ela “entrega tudo”, “dá o nome” e “janta cedo” o status quo?
Não há mais possibilidade de nada sem nós, da política às artes. Como disse Jota Mombaça, desejamos profundamente que o mundo como nos foi dado acabe. Pois queremos refazê-lo com nossas cores, músicas, danças e múltiplas possibilidades de existir. Não farão mais nada sem nós e esse processo é irreversível!