Na COP30, o som do mar é tão cristalino quanto a voz dos povos da floresta
A Amazônia Azul: proteger a vida submersa ou naufragar nas contradições do “progresso”? Cada onda repousa no cais – aqui não existe lead para o colapso
por Raul Mareco
Não há momento mais oportuno para celebrar o Dia da Amazônia Azul, neste dia 16, em meio aos debates da COP30. Uma Amazônia que escapa aos olhos banais: entidade silente que resiste sob a pele do planeta. São 5,7 milhões de km² de soberania líquida, estendendo-se do ventre do Amapá aos pampas meridionais. Quase 70% do Brasil pulsa sob sua própria maré.
Enquanto a COP30 respira nas artérias de Belém — assembleia planetária no coração verde do mundo — emerge uma narrativa submersa: jade amazônico e azul atlântico dançam um balé de urgência climática. Não são cifras: é o diário de um oceano febril.
Insurreição dos povos das águas
À margem da COP dos palácios, o grito da Cúpula dos Povos ecoa do fundo: povos indígenas, coletivos, caiçaras e gente de sangue antigo reescrevem, ao seu modo, o debate climático. Nunca tantos originários ergueram a voz; justiça, acesso a fundos climáticos e reconhecimento transformam-se em imperativos.
Caiçaras — povos pesqueiros tradicionais — estratificam cultura e alimento em um litoral em conflito: pescam na maré das restrições e das urbanizações predatórias, resistindo com mãos e saberes antigos.
O pacote da independência azul?
Na abertura da COP30, a Declaração de Belém promete combate à fome e costura entre ecologia e justiça. Mas o tempo é urgência: promessas resistem à ressaca? “Só a ação resgata o futuro”, decreta a presidência do evento.
A cúpula amazônica das urgências climáticas move as placas do destino: nunca o oceano foi tão topo de pauta. Surge o Pacote Azul: US$ 116 bilhões anuais destinados à defesa dos mares, à energia renovável e ao uso consciente.
É um ajuste de contas com a história: o oceano retém 30% do CO₂ humano e oferta metade do oxigênio do mundo. Somos todos seres dependentes de duas Amazônias: a da floresta e a do mar.
O oceano não é preto-petróleo: ventos alvissareiros
Na Amazônia Azul não existem apenas bilhões em recursos fósseis (95% do petróleo e 80% do gás nacionais), mas também quase metade de toda a pesca — alimento para populações inteiras.
A costa, tecida por manguezais gigantes — guardiões do carbono azul e base silenciosa do equilíbrio climático — passa de tesouro negligenciado a alvo da ânsia geopolítica.
O impulso de extrair riqueza profunda, como o petróleo na Foz do Amazonas, ameaça esse ecossistema vital. Cada litro de óleo pode arrancar páginas inteiras da poesia marinha, arriscar a contaminação ambiental, desequilibrar a segurança alimentar e enfraquecer a verdadeira moeda de longo prazo: biodiversidade e clima.
Escolher a rota do petróleo, nesse contexto, é hipotecar o futuro; é tratar um território de altíssima inteligência ecológica como mero campo de exploração passageira.
Mas existem fugas possíveis.
Imagine gigantes de aço — hélices delirantes cravadas em alto-mar — zumbindo como colmeias elétricas sob o sol equatorial.
É a nova aposta do século: parques eólicos oceânicos, monstros benéficos que colhem vento e lançam megawatts limpos direto nas veias de um Brasil arcaico — enquanto o velho petróleo tende a escorrer por entre mangues e recifes feridos.
O potencial? Mais de 700 gigawatts explodindo do Atlântico — três vezes tudo o que já geramos em terra firme. Falam em 516 mil empregos até 2050; falam em R$ 900 bilhões circulando como sangue novo em costas esquecidas.
Mas cada hélice girando no horizonte também pergunta: será que o progresso, desta vez, vai respeitar a dança dos peixes, o voo das aves, o sustento do pescador?
É o futuro na maré alta — se não tropeçarmos num samba de erros ambientais. Talvez esta seja a primeira revolução energética em que o vento sopra a favor do planeta, não do lucro fácil dos barões fósseis.
Que venha a tempestade: o Brasil precisa aprender a vender vento sem perder a ternura do mar. Todo futuro energético pode nascer do azul.
Onde o encontro é trilha sonora vital das profundezas
Belém, na fusão do Amazonas com o Atlântico, é híbrido total: barro e sal, verde e cobalto. Nos manguezais, a seiva e a lama sustentam o maior sequestrador de carbono do planeta.
Mas tudo sangra na Amazônia Azul — com ironia, silêncio e agonia. O Atlântico Sul perde frações de pH, enquanto os recifes — menos de 0,1% do oceano, mas guardiões de um quarto da fauna marinha — ficam à deriva.
Só o Brasil possui recifes no Atlântico Sul: 3.000 km de filigrana calcária do Maranhão ao Espírito Santo. Trinta e cinco por cento desses corais só existem aqui.
Murais evolutivos como Fernando de Noronha — relicário de peixes únicos — encaram calor, caos químico, o peso das âncoras humanas. Mas há outro segredo, sonoro e alvissareiro, invisível aos olhos: a playlist acústica do oceano.
Tecnologias sonoras revelam que o mar está vivo no som — biofonia (criaturas), geofonia (a Terra), antrofonia (ruído humano).
Corais variam com o calendário lunar, crustáceos estalam, ouriços-do-mar criam paisagens acústicas e baleias sussurram melodias que atravessam continentes.
A playlist da Amazônia Azul é sinfonia: pulso invisível do planeta.
O lado B do oceano
Mas essa trilha sonora tem interferência. O sonar ativo revela o lado B: naufrágios, pneus, âncoras, cabos, detritos humanos — cicatrizes e testemunhos da ocupação industrial.
No Porto de Niterói (RJ), o grotesco “Mar de Pneus” exibe esses fantasmas submersos.
A antrofonia — ruído humano persistente — é faixa pirata que distorce e encobre comunicações naturais. Uma poluição que mutila a fala dos peixes e o convite à desova.
O impacto é brutal: o barulho desalinha cardumes, sufoca a teia cristalina que sustenta o oceano.
Remix do futuro
Amazônia Azul não é área: é pulsação, sístole e diástole do planeta. pH, corais, cardumes — sintomas de uma febre sistêmica global.
O chamado submerso está lançado: navegaremos na urgência ou afundaremos cegos pelo tilintar do lucro?
Honra-se o oceano, mas só quem ouve a playlist completa — sem cortes, sem censura, sem silêncio — pode remixar o futuro e impedir que nossa trilha acabe abrupta na última faixa.