Mulheres negras no controle da narrativa: Um papo com Mirtes Santana, roteirista da HQ ‘Superpunk’
Sendo uma mulher negra cria do Grajaú, ela sabe que o caminho não foi fácil, mas ser referência para as que estão chegando agora é também um motivo de celebração
O mês de julho representa algo muito importante e especial na trajetória de Mirtes Santana: a talentosa e criativa roteirista está assinando o roteiro do seu primeiro quadrinho, a HQ ‘Superpunk’, que terá seu lançamento oficial na PerifaCon, nos dias 27 e 28 deste mês. Sendo uma mulher negra cria do Grajaú, ela sabe que o caminho não foi fácil, mas ser referência para as que estão chegando agora dentro de um universo dominado por homens – em sua grande maioria brancos -, é também um motivo de celebração. Como diria a produtora cultural, arte educadora e bailarina Gal Martins: a revolução também precisa ser estética.
Buscando contar histórias que celebrem trajetórias de mulheres negras latino-americanas e caribenhas, durante todo o mês de julho a coluna irá abrir espaço pra quem está no corre impactando de forma positiva e propositiva a comunidade negra.
Com vocês, a roteirista Mirtes Santana:
Qual a sua relação com a escrita e a literatura?
Minha relação com a literatura começou ainda na infância. Meus pais, principalmente minha mãe, sempre me estimularam a ler de tudo: desde gibis da Turma da Mônica, onde minha alfabetização começou, até romances como Frankenstein, Brás Cubas, Moby Dick, conforme fui crescendo. Existe até uma piada familiar, de que comecei a usar óculos por ter “gasto demais os meus olhos” lendo livros. Mesmo com uma educação formal incompleta e de origens muito humildes, meus pais sabiam que era crucial para mim ter uma boa formação a partir da leitura que, além de me proporcionar conhecimento, me daria repertório e ampliaria o vocabulário. Segundo eles, a inteligência e o estudo eram elementos que me garantiriam um futuro melhor, além de me colocar em um patamar acima do meu “marcador social de pobreza”, já que nasci e cresci na periferia de São Paulo. Vivemos em um mundo em que o acesso à educação de qualidade ainda é difícil, e tenho certeza que muitas pessoas da minha geração foram as primeiras de suas respectivas famílias a terem acesso ao ensino superior pelo mesmo incentivo à leitura e ao estudo.
Além da questão social, ler, para mim, se tornou uma obsessão, um refúgio, aliado à minha escrita em diários, hábito que mantenho até hoje. É claro que ser escritora parecia uma fantasia distante, mas acabei encontrando na minha formação em audiovisual uma alternativa para dar vazão a essa imaginação hiperestimulada e as minhas pulsões narrativas. Para mim, escrever uma história é sempre voltar às minhas origens, aos questionamentos e às faltas de uma menininha que ficava noites a fio lendo e repensando imaginários possíveis e impossíveis embaixo de uma cabaninha de lençóis. Eu sei, é clichê… mas até essa visão romantizada é algo bem convencional de contadores de histórias. Ao crescer, tive a oportunidade de debater esses questionamentos da infância a partir da escrita deste quadrinho: como construir um imaginário possível de uma super-heroína atuando na periferia? A partir dessa inquietude, “Superpunk” foi se tornando uma resposta possível, como uma narrativa alcançável aos nossos olhos e do público periférico que visamos atingir.
Como foi receber este convite para roteirizar a HQ ‘Superpunk’?
Para mim, foi uma grande honra ter recebido o convite para escrever uma HQ. Como roteirista para TV e streaming, é sempre um desafio olhar para formatos diferentes, e me senti profundamente estimulada a escrever. Foi assustador no início, porque as “regras” de escrita de histórias em quadrinhos são um pouquinho diferentes de um roteiro de cinema: a agilidade dos diálogos, as descrições das ações e o encadeamento dos acontecimentos precisam ser muito mais dinâmicos, para dar conta da velocidade da leitura e percepção das imagens nas páginas. Trabalhar com o Guilherme Petreca, que é um ilustrador brilhante e muito talentoso, me ajudou muito a mergulhar de cabeça nessa narrativa. Temos uma parceria de mais ou menos dois anos, desde 2022, quando começamos a pensar esse projeto como uma série de animação, que estamos desenvolvendo juntos (e que já foi selecionado para rodadas de negócios em Annecy, no ano passado). Nossas vivências periféricas convergiram muito durante esse processo criativo (ele nascido e criado no ABC e eu no Grajaú) e usamos esses contrastes e semelhanças como ponto crucial na narrativa, para compor personagens que poderiam ser nossos amigos, vizinhos e mostrando parte da nossa pré-adolescência, além explorar cenários que só nós dois conhecemos. Em nossas trocas, criamos um mundo totalmente representativo, ao mesmo tempo em que brincamos com a fantasia e nossas crenças, tornando essa história única e inesquecível.
Por que é tão importante termos pessoas negras no controle da narrativa?
Acho que pontos de vista diversos são sempre muito importantes para dar potência e às narrativas, principalmente a vozes que ficaram tanto tempo nas sombras, como exemplo das narrativas negras e indígenas. No universo do cinema, por exemplo, formas hegemônicas de contar histórias dominam as telas até hoje, mas já existem novas perspectivas sendo representadas e contadas, tomando fôlego e ganhando evidência. Vivemos um momento diferente, em que questionar protagonismo e estereótipos são ponto crucial para criarmos histórias mais ricas e múltiplas. Já participei de salas de roteiro para diversos projetos, em que a minha perspectiva como mulher negra e queer sempre foi ouvida e levada em consideração na construção de personagens mais complexos, no entanto sabemos que a realidade nem sempre é assim. Precisamos estar sempre vigilantes, principalmente enquanto profissionais negros, para não cairmos em armadilhas de validar discursos que não acreditamos ou que são meramente representativos, reforçando estereótipos que só contribuem para uma visão errônea do senso comum sobre nossas vivências. Ainda há um caminho longo a ser percorrido. Muitos dos nossos embates ainda são violentos, contraditórios, envolvem um mercado de trabalho que oscila muito, e onde muitos produtores não apostam por achar nossas narrativas um risco. Para mim, não basta apenas representar, mas sim, complexificar, contradizer, nuançar. Eu ainda acredito que autores negros que contam as suas histórias, com suas subjetividades multiplas e fora da hegemonia, precisam ser mais valorizados.
Você acha que a pauta racial avançou no Brasil?
Como disse, acredito que a discussão da pauta racial se tornou evidente, um debate importante em diversos segmentos culturais – principalmente em produtos audiovisuais e dentro do escopo da cultura pop, que tem um alcance de audiência muito grande. No entanto, ainda acho que as discussões precisam ser mais profundas, para além da simples representatividade negra nas telas, nos quadrinhos e em qualquer outro produto cultural. Além de reparação histórica, que é inegavelmente relevante em detrimento de toda a subjetividade que foi negada à comunidade negra durante toda a História, sinto falta de jornadas mais individuais, complexas e contraditórias – vivências, nuances e experimentações negras que vão muito além de achismos ou de pontos de vista da branquitude sobre como a negritude deve ser retratada. Somos muitos profissionais classificados no audiovisual, nos quadrinhos e na mídia, mas há pouco espaço para uma aposta.
Qual legado gostaria de deixar?
Nossa, essa é uma pergunta bem difícil! 30 anos ainda é nova pra essa pergunta, não? (risos) Eu acredito que, como artistas, tudo o que fazemos para o mundo tem um impacto que queremos deixar para as gerações futuras, principalmente para outras menininhas negras que também estão lendo “Superpunk” em cabaninhas à noite. Servir como referencial para elas, como a materialização de um sonho ou a possibilidade de sonhar, é algo que eu acho bonito de se pensar como um legado. Mas eu também acredito que, no meu caso, pela criação que tive, não consigo não olhar para o meu passado, e me orgulhar de poder ser uma voz que ecoe as dos meus avós, bisavós e ancestrais. Gosto muito desse conceito de ancestralidade, de que as lutas passadas também são as lutas que precisamos constantemente vencer. De que vencemos diariamente guerras coletivas por representação digna e também por dar camadas nessas mesmas representações. Acho que, para mim, a minha missão e também legado é dar essa complexidade: dar vida a personagens difíceis, o que nem sempre é criar personagens regidos por uma moral de bem e mal, mas completos, lógicos, vivos. Esses personagens são os meus amigos, meus parentes, mas também meus avós e bisavós, silenciados e marginalizados por terem sido analfabetos, incompreendidos, pobres, muitos deles tratados sem nenhuma dignidade. Eles amaram, lutaram, choraram. É sobre dar vida a eles, às memórias deles e à minha também. Eu acho que esse legado de transgredir com as regras impostas, contra um status quo de representações vazias na mídia, é um dos maiores atos de rebeldia da escrita e da criação.