Migrar é uma palavra grande
Migrar é um ato de rebeldia e dignidade. Leia artigo de Lucía Ixchíu, ativista indígena e coordenadora da Black Indigenous Liberation
Por Lucía Ixchíu*
Migrar é uma palavra imensa e, na amplitude e vastidão de seu significado, cabem todas as histórias. Cabem todas as pessoas, cabem os milhões de estrelas e constelações que enfrentamos e vivemos nessa realidade.
Neste momento, escrevo enquanto vários genocídios acontecem no mundo. Falar, refletir e escrever sobre isso, enquanto completo quatro anos como migrante, exilada e como uma jornalista que, em meio às circunstâncias, teve que seguir com sua vida e, em meio à violência política, também teve que compreender as fronteiras e a transterritorialidade.
As redes de solidariedade e acolhimento salvam vidas em um contexto neoliberal capitalista de poderes patriarcais que nos impõem fronteiras, violência e distâncias, que nos colocam uns contra os outros. Migrar é uma palavra muito grande. Migrar é salvar a vida, é escapar da fome e da pobreza, da violência política, da perseguição, da criminalização. É fugir da violência machista e patriarcal em casa, é romper o medo e o silêncio, é escapar de um genocídio, de uma guerra.
Migrar em condições de empobrecimento e perseguição política não é sair para estudar com uma bolsa de estudos. Migrar é um ato de rebeldia e dignidade. Migrar não se faz de um escritório, migrar não é um simpósio acadêmico. Somos mais do que apenas números, mais do que apenas dados, mais do que apenas remessas. Migrar é uma palavra que atravessa minha existência.
Ninguém sabe ou pode julgar as razões pelas quais deixamos nossos territórios, ninguém deveria opinar, mas, no entanto, o fazem: dentro de nossas próprias famílias, em nossos círculos de amigos e, o mais lamentável, pessoas que nem nos conhecem se acham no direito e na superioridade moral de opinar sobre as vidas dos outros.
Mesmo no exílio, no meu país de origem, as pessoas continuam com uma difamação permanente sobre o meu trabalho. Isso significou compreender a miséria humana e a insensibilidade, que, sem dúvida, foram vitais nesse processo e, sem querer, acabaram limpando o caminho.
Muitas vezes, temos que enfrentar a incompreensão do que é migrar, do que é estar exilado. Ninguém entende a transterritorialidade até que a vivencie, ninguém entende uma fronteira até que a atravesse. E isso é migrar: não é uma viagem de passeio, nem de diversão, tampouco férias. Muitas vezes, não é algo planejado. Saímos com o que temos, com o coração partido.
Isso só é entendido por quem viveu. Eu não quero sua empatia, apenas o mínimo respeito como ser humano. Migrar é abrir-se ao desconhecido e começar do zero muitas vezes, é abrir-se ao inesperado e aprender a navegar na incerteza. É aprender tudo três ou quatro vezes, é comer de forma diferente, é caminhar de forma diferente. Migrar está nos nossos pés, está no caminho.
Migrar é um ato natural da biodiversidade, da natureza. A mãe terra é uma só, como os rios que fluem. Começar estas palavras para mim foi complicado, é falar com o coração partido, como uma contadora de histórias que já não vive em sua casa, como uma contadora de histórias que teve que aprender a entender que seu território está em si mesma, que tudo o que conhecia, e que aquela mulher, aquela pessoa que fui, já não existe.
A Guatemala, o país onde nasci, que está situado na América Central, atualmente tem a segunda maior cidade com guatemaltecos fora de suas fronteiras: Los Angeles, Califórnia, nos Estados Unidos. Já não somos o que éramos. Há muitas cidades nos Estados Unidos onde os idiomas principais são idiomas maias que vêm do meu umbigo, que vêm do nosso território, e muitos deles passaram do nosso idioma originário para o idioma colonial: o inglês.
Os migrantes somos a maioria no mundo: os deslocados, os exilados, os refugiados pela violência, pelo empobrecimento, pela imposição de fronteiras, pelo fanatismo religioso e pelas supremacias que fazem crer que um território é válido sobre outro.
Esses somos nós, os caminhantes. Na cidade onde vivo agora, há centenas de acampamentos de migrantes de diferentes partes do mundo: pessoas da América Central, irmãos da Guatemala, maias como eu. Em muitos lugares, os sistemas de acolhimento são infames, indignos, muito ao estilo dos Estados-nação.
A União Europeia e os Estados Unidos têm sistemas de acolhimento vergonhosos e precários. São incapazes de compreender a complexidade do que significa migrar, são incapazes e não têm interesse em compreender o que nos toca caminhar, voar ou nadar. Nos toca existir, respirar e provar que somos seres humanos.
Migrar é uma palavra muito grande. Migrar também é sair da zona de conforto, é uma professora, porque nesta história não somos vítimas. Eu não sou uma vítima, sou um produto das minhas circunstâncias, no país onde me coube nascer, onde não se têm garantidos os direitos mínimos e básicos, onde o senso comum está extinto, onde ter que dar a cara implica correr riscos.
Agora, isso sou eu. Migrar é um aprendizado constante. Migrar é abraçar o silêncio, o vazio, a escuridão e encontrar alívio. Já não sou a pessoa que deixou meu país. Migrar é também a possibilidade de renascer e de ser aquela pessoa que você sempre quis ser, mas em outro lugar, onde começar de novo e se reinventar faz parte da jornada.
Às vezes, neste caminho cheio de tanta contradição e incoerência, cheguei a pensar que talvez começar de novo onde ninguém te conhece e ninguém te julga seja apenas seguir o curso da vida, onde ninguém sabe que você existe, e isso é uma forma de continuar, de viver. Afinal, a natureza faz isso, ela se adapta, assim como as borboletas, os búfalos, os rios e as plantas. Nós migramos, nós e nossas vidas, nossas histórias e nossos territórios. Migrar é uma palavra muito grande.
Existimos sem o seu consentimento e continuaremos migrando. Isso é por todas nós, mulheres migrantes no mundo, por todas as que já não estão e por todas as que ainda virão. Não falo em nome de ninguém, mas as nomeio, porque narrar nossas histórias é fazer justiça.
Lucía Ixchíu é ativista indígena, coordenadora da Black Indigenous Liberation