Meu RG é peça de museu – e a maior política pública para pessoas trans
O primeiro documento com o nome retificado de uma pessoa trans faz parte hoje do Acervo Bajubá
O primeiro RG de uma pessoa trans que teve seu nome retificado, sem que esta pessoa fosse patologizada ou lhe fosse exigida a cirurgia de redesignação sexual, hoje é peça de museu. É uma conquista relativamente recente, quando pensamos em termos históricos, mas já é legado.
O documento de identidade em questão é o meu, expedido no dia 26 de janeiro de 2018. Foi o primeiro documento oficial que tive com o meu nome, aos 48 anos de idade. Vivi quase meio século tendo esse direito básico negado pelo Estado brasileiro.
Após um longo processo judicial, que incluiu um pedido de morte assistida, e uma denúncia dessa violência à Organização dos Estados Americanos (OEA), eu conquistei para mim e para toda a população trans o direito a retificar o nome e o gênero nos documentos, sem que para isso tenhamos que nos declarar doentes ou modificar nossos corpos com cirurgias.
Doei esse RG para o Acervo Bajubá, projeto comunitário de registro de memórias das comunidades LGBTI+ brasileiras, e hoje ele está exposto no Museu da Resistência, em São Paulo. Doei porque essa não é uma conquista individual, é uma conquista para toda uma população, historicamente excluída do direito de existir e da possibilidade de dignidade.
Entendo que, para quem nunca pode existir, museu não é passado, é legado. É a continuidade de minha mãe, do sonho e da realidade de uma mulher negra que sempre sonhou ter – e teve – uma filha.
Legado não tem a ver com a transferência de valor para uma pessoa, tem a ver com continuidade coletiva. Eu não pude simplesmente retificar meu nome, tive que apresentar cartas de reconhecimento social do que eu sempre fui. Mas depois desse reconhecimento um precedente foi aberto para que nenhuma pessoa trans tenha de passar por isso novamente. Ela poderá ir a um cartório e retificar seu nome e gênero.
Meu nome não foi dado por minha mãe nem por mim mesma. Me foi dado no colégio de maneira vexatória, por jovens e adultos que achavam meu nome anterior, Neumir, feio. Passaram a me chamar então de Neon, associando ao gás nobre porque naquele momento estávamos revisitando a tabela periódica. E bom, Djavan ensinou que “a luz de um grande prazer, é irremediável Neon”.
Não escolhi meu nome, mas abri a possibilidade para que todas as pessoas depois de mim pudessem realmente se autonomear. Isso é legado. Essa é a maior política pública já feita para a população trans no Brasil.
Eu não tive dimensão disso na hora, quando buscava romper um processo de violência contra a minha própria existência. É um fato histórico, é legado.
Eu sou uma pessoa trans e, antes dessa condição, uma mulher negra, mas meu processo judicial abriu caminho também para pessoas trans não-binárias, que puderam escolher nomes que não são comuns ou tradicionais, sem questionamento. Também pavimentou para que homens trans pudessem retificar seus nomes sem cirurgia.
Dessa forma, o legado é nosso. Para que as que estão vindo sejam muito maiores do que eu. Para que o que elas vão vir a ser seja muito maior do que qualquer intenção.